Foi um dos grandes momentos da edição deste ano do Folio, aquele que tentava desvendar como Encontrar normalidade na anormalidade e fazer disso material capaz de se transformar em grande literatura. Um tema que, para Isabel Lucas – a quem ficou entregue a moderação -, tinha muito a ver com a obra destes “dois autores que têm desafiado a norma”, ambos provenientes de “meios pouco dados a grande literatura”. Autores que respondem pelos nomes de Donald Ray Pollock e Dulce Maria Cardoso, autores de pérolas como “Sempre o Diabo” e “Banquete no Paraíso”, no caso do norte-americano, e de “O Retorno” ou “Eliete”, no caso da escritora portuguesa.
À questão sobre “o que é a normalidade em literatura?“, Pollock revela não ter uma resposta: “Não sei. Em Knockemstiff relacionava-me com metade da população, onde o álcool dominava. É a situação que define o que é normal“. Sobre o facto de finalmente parecer que o compreendem em Nova Iorque, diz que “talvez os leitores estejam cansados de ouvir falar da East Coast“.
Para Dulce, “a normalidade é uma convenção” criada por uma espécie que não se deveria ter em grande conta e que tende a tratar mal as minorias, cabendo a missão de resgate à literatura: “Somos uma praga e extremamente adaptáveis. As minorias serão sempre esmagadas pela ideia de normalidade. A literatura em geral fala dessas minorias“. Falando de normalidade, considera que “o escritor é um grande anormal. E profundamente infantil. É bom mas torna-nos pouco práticos. Transportamos essa anormalidade, esse desconforto para o nosso mundo“.
Isabel lucas introduz o tema moderno e muito actual da banalização do que é anormal, questionando se será a ficção um lugar seguro. “A ficção está sempre obrigada a uma lógica. A realidade não. A realidade ganha sempre à ficção perante o espanto“, avança Dulce, mencionando estarmos no olho do furacão, que vai do avanço da tecnologia às alterações climáticas. “Não estamos em tempos pós-coloniais. Vivemos um colonialismo sem face, das corporações. Como saímos disto? Não sei, não nos tenho em grande conta. Tenho medo“.
Sobre a inverosimilidade de Trump, Donald parece estar ainda a sofrer de stress pós-traumático: “Para mim ainda é como se ele não fosse o presidente. Estou em negação. Chegará o dia em que deixará de valer a pena escrever ficção quando temos gente como Donald Trump. É tudo tão inacreditável que os escritores não chegariam tão longe. Não posso viver com a ideia de reeleição. A minha mulher é uma political junkie. Eu lido com as coisas enterrando a cabeça na areia. Trump seria uma grande personagem ficcional, ficaria bem melhor num livro”.
Dulce procura, nos seus livros, o lado excepcional – e pouco normal – da humanidade, mesmo que à superfície sejamos todos enganosamente Elietes. “Nos meus livros as personagens são excepcionais ou estão em condições excepcionais. A normalidade ou a felicidade são maçadoras, não há nada a dizer sobre isto”. Isto enquanto rejeita a ideia de universalidade como motor da sua escrita: “Cada autor tem uma coisa irrepetível que é o seu ponto de vista. Não acredito em escritores que escrevem sobre o universal”.
Donald recorda os tempos de juventude, onde em sua casa não existiam quaisquer livros, nem mesmo a Bíblia. “Quando li o primeiro livro, “The Haunted Bookshop”, aos 14 anos, nunca tinha visto uma livraria, mas compreendi desde logo que adorava livros”. Curiosamente, ambos começaram o seu percurso literário dactilografando as palavras de outros – romances de cordel no caso de Dulce e contos de boa gente como Flannery O`Connor no caso de Pollock.
Sobre o magistral “O Retorno” e o regresso às memórias de criança, Dulce disse não ter querido “ajustar contas”, antes “fazer um romance sobre a perda, o processo de luto”. Até porque, para si, “a infância é sempre um continente perdido. Portugal em 1975 era só para fortes, não era para meninos. Mas somos todos sobreviventes da infância, mesmo das mais felizes”.
Regressando atrás na linha temporal, Donald falou da relação tensa com o pai, ainda vivo – tem 90 agora -, dizendo que apenas nos últimos três anos conseguiram estabelecer uma relação razoável. “Passei anos a beber até ao esquecimento. Há muitos períodos da minha vida de que não me lembro. Daí regressar à infância“. Um mergulho no alheamento que é de todo estranho a Dulce: “Nunca consegui estar fora de mim. Nunca bebi álcool ou fumei um charro. Esta sobriedade é uma espécie de condenação”.
Sobre o presente e a missão do escritor em reflectir o seu tempo, Donald rejeitou tal tarefa: “Gostaria de o fazer mas não o consigo. Há algo no presente que não me interessa. Quando estou a escrever no quarto posso decidir onde quero estar. Sou influenciado pelo que se passa agora mas transporto-o para o passado”. Já Dulce disse estar mais interessada em variar entre o passado e o presente, tendo querido, com “Eliete”, saber como a herança de Salazar ainda está presente em nós. “É fácil terminar com o regime mas é difícil mudar a mentalidade. Interessa-me saber como é que aprendemos tão pouco com o passado. Como se dá essa amnésia. Um povo que não se ficcional está condenado a não aprender”.
Terminou-se a falar sobre auto-ficção, algo que está muito longe da escrita de qualquer um dos autores. “Tenho uma vida muito monótona”, disse Dulce, preferindo antes divertir-se num outro parque de diversões: “Ser romancista é brincar um pouco a Deus”. Quanto a Pollock, prefere deixar isso para quem teve vidas memoráveis, criando a sua própria banda-sonora: “Um livro de memórias seria algo para alguém como Janis Joplin”.
O Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos continua até dia 20 de Outubro. Consulte aqui o programa.
Fotos: Luisa Velez
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