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Folio 2018: de mãos dadas com o outro lado do Atlântico

Por Pedro Miguel Silva · Em 23/10/2018

Se, no que toca a orações, existisse um mantra que os organizadores do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos não iriam desdenhar repetir, provavelmente seria qualquer coisa deste estilo: um festival de cada vez.

De facto, muita coisa mudou desde a 1ª edição do Folio, corria então o ano de 2015, e muito continua a ser diferente ano após ano, seja o tamanho das tendas – que agora já não existem, exceptuando a que tem acolhido os concertos -, os locais de culto literário – a Casa Tinta da China, com o seu terraço e as festas líquidas, deixou saudades – ou, ainda – e isto na verdade pouco mudou -, o facto de alguns autores, convidados ou tradutores acabarem, já na recta final, por saltar fora do alinhamento.

A verdade é que, mesmo com alterações geográficas ou percalços de conteúdo, o Folio continua a ser um festival literário irreverente, oferecendo uma programação diversificada que tanto inclui um concerto de Samuel Úria – o adepto maior do uso da carga de ombro -, uma exposição de fotos de Hilda Hilst – onde esta pousa como uma Monroe morena – ou, ainda, uma monja que insiste que o sofrimento não passa de um capricho pessoal.

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Sem olhar a estatísticas, este terá sido o ano onde mais se fez notar a presença dos nossos irmãos do outro lado do Atlântico, entre autores, convidados ou organizadores de festivais. Na mesa “Folio e Outros Festivais”, por exemplo, para além dos nacionais João Morales (Livros a Oeste – Lourinhã), Ana Miranda (Arte Institute – Nova Iorque), Manuela Ribeiro (Correntes d’Escritas – Póvoa de Varzim) e Ana Filomena Amaral (Festival Literário Internacional do Interior – FLII – Lousã), estiveram também os brasileiros Mauro Munhoz (FLIP – Parati), Julio Silveira (Ler – Rio de Janeiro) e Gisele Corrêa (Flipoços – Minas Gerais).

Uma mesa onde cada interveniente foi convidado a vender o seu festival, bem como a enumerar aquilo que, no caso de existir um Pai Natal das letras, não se importaria de pedir para o sapatinho. Entretanto, e ainda que cada um tenha uma carteira com recheios bem diferentes, a ideia que todos parecem partilhar é a da necessidade de uma maior cooperação, ficando aberta a porta a novos intercâmbios num futuro próximo.

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Outro momento 100 por cento brasileiro foi a conversa entre Marcelo Moutinho e Socorro Acioli, moderados por Werneck, subordinada ao tema “Memória e outros contos”.

Socorro contou a recambolesca história, feita de muita crença e ainda maior insistência, que a levou a frequentar a muito exclusiva oficina literária do mestre García Márquez, a partir de um conto que escreveu baseado num episódio real, passado no seu Ceará – “um lugar onde nunca faltam histórias” -, onde uma cabeça de santo, que desde o levantamento da estátua ficou órfã e entregue ao chão, acabou por servir de banheiro público, de centro de encontro de casais apaixonados ou de casa a um vagabundo. Um esboço que acabou por conduzi-la ao romance “A cabeça do santo” – ainda sem edição portuguesa -, onde um jovem descobre possuir o fantástico dom de ouvir as preces das mulheres para Santo António – ou, dito de forma mais musical, Antônio.

Marcelo Moutinho, autor do livro de contos “Ferrugem” – também sem edição portuguesa -, falou do cronista como uma espécie de David Attenborough, atento aos signos da cidade e a coisas como as conversas perdidas, os pregões dos vendedores ou os arrumadores que pedem dinheiro para tomar conta do carro, transformando tudo isso numa “arqueologia das palavras”. Ele que, tendo sentido um atraso intelectual em relação aos seus comparsas de estudo jornalístico, percebeu no regresso ao bairro de infância que o que tinha a fazer era atirar às urtigas com a literatura da moda e o mundo da burguesia intelectual para se dedicar à memória da – sua – terra.

Com moderação dos adolescentes Bernardo Furtado e Margarida Brettes, os geógrafos Álvaro Domingues, João Seixas e Francesc Muñoz falaram de “Os futuros das cidades”, que a julgar pelo trio dificilmente serão capazes de arrancar um sorriso.

Novas configurações tecnológicas, a tremenda desigualdade económica e a exploração do outro, o elogio da diferença ao contrário da pálida globalização, a revolução low cost e o estado bárbaro imposto pelo acostar dos cruzeiros, a designação de territoriantes ao invés de habitantes, a urbanização da pobreza, a praga dos AirBnb`s ou a urgente regulação do turismo foram alguns dos tópicos abordados, em tempos onde o pensamento mais parece uma utopia: “É difícil olhar o futuro enquanto estamos em pleno movimento”.

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Ricardo Araújo Pereira é sempre sinónimo de casa cheia, mesmo que, não fazendo o tão útil trabalho de casa, se vá em busca de comédia e se regresse a casa de coração apertado e uma lágrima no canto do olho. Foi assim com “O pai da menina morta”, o livro do brasileiro Tiago Ferro que Ricardo tão bem apresentou recorrendo à mitologia e desaparecimento de Perséfone, raptada por Hades. Um livro que, nas palavras de Ricardo, é “impiedoso” e difícil de categorizar, algo como “uma autópsia do autor sobre si próprio”, e que parte da história pessoal de Tiago Ferro que viu morrer uma filha quando esta tinha oito anos. Uma apresentação devastadora que Tiago agradeceu, amenizando o silêncio quase sepulcral da sala com um “você devia ter feito uma coisa mais engraçada para vender o livro”, que regressou quando Bárbara Bulhosa leu um excerto tocante que encerrou com um “Não. Você não vai morrer. Nunca mais”.

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A pergunta cliché “O escritor escreve sempre o mesmo livro?” estava por detrás daquela que prometia, antes de as casas de apostas terem fechado, ser a grande mesa do dia, conseguindo juntar um trio de respeito: Isabel Lucas, Allan Hollinghurst e Cynan Jones. Porém, a ausência de tradução simultânea – a não vinda de tradutores foi salva in extremis pelo tradutor do romance de Cynan Jones, que está a chegar às livrarias com o selo da Elsinore, e que por acaso estava presente – e uma moderação que quase transformou Isabel Lucas numa mulher invisível fez temer o pior. A recta final, porém, onde Isabel Lucas questionou Hollinghurst, Hollinghurst e Jones questionaram Isabel Lucas e onde Jones e uma espectadora encostaram o tradutor à parede, acabou por valer bem a pena.

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Hollinghurst falou de dois tipos de escritores, os que criam sempre um território diferente e os gravitam normalmente em redor do mesmo universo, considerando-se parte do segundo grupo – isto enquanto teceu rasgados elogios a Hilary Mantel, uma escritora que navega por todos os mares literários. Elogios que se estenderam mais tarde a Edward St. Aubyn pelo facto de ter criado uma auto-ficção na 3ª pessoa, algo que Hollinghurst diz não ter feito: “Sinto que nunca escrevi a história da minha vida, mas as minhas memórias estão lá”.

Cynan Jones falou da escrita como instinto, dando o exemplo da forma de tocar de Eric Clapton para referir a voz do escritor, aquilo liga os livros de um escritor. Ele que fez rir o público quando disse ter escrito o primeiro romance em dez dias, isto após desistir de um romance sobre um homem que gostava de quadros de nus trocando-o, antes, pela história de um homem que perdeu uma vaca.

Quanto a Isabel Lucas, que a certa altura disse “tudo o que escrevo é uma reacção ao que leio. Sou uma leitora, uma jornalista, não uma escritora”, falou da voz, do tom e da música que distingue os escritores e os aproxima, mostrando de que forma, por exemplo, os universos de Cormac McCarthy e Cynan Jones são ao mesmo tempo tão próximos e tão distantes.

Que 2019 nos traga um Folio ainda mais irreverente e, se não for pedir muito, um que nos devolva as festas e o terraço da Casa da Tinta da China.

 

As fotografias foram cedidas ao Deus Me Livro pela organização do Folio

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Pedro Miguel Silva

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