• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Tinto no Branco, Deus Me Livro
Mil Folhas 0

Foi bonita a festa – um percurso no Tinto no Branco 2016

Por Paulo Ribeiro da Silva · Em 09/12/2016

Terminou ontem o Tinto no Branco 2016, segunda edição do festival literário de Viseu. Mais do que livros, escritores e diseurs, celebrou-se a cidade e o seu Dão, com uma feira de vinhos e outras delicatéssen bem típicas a preços convidativos, porque nem só do Verbo vive o homem. A população ocorreu em massa e eram raras as almas que não traziam consigo um copo de vinho, entre conversas partilhadas e percursos improvisados, acolhidas pelo belo Solar do Vinho do Dão.

Na primeira noite seleccionámos o evento “Amor Às Cegas” – Poesia no Quarto Escuro, avisados do sucesso na edição de estreia do certame. Em plena Adega do Bispo, na completa escuridão, somos contemplados com quatro vozes que nos entregam poesia, versando além do Amor que prometia o programa. A experiência foi surpreendente, pela intimidade que a poesia tão naturalmente evoca, mesmo numa sala cheia de estranhos. Poemas ditos magistralmente por Filipe Vargas, Luís Filipe Borges, Mariano Marovatto e Rita Brütt, em que dificilmente se associa uma voz a uma cara (excepto no caso de Brütt, por razões óbvias).

O silêncio foi total. O espectador só, diante das palavras, inconsciente do Outro que o rodeava. Uma missa obscura, como se envolta em segredo, a poesia por evangelho, evocando os cristãos originais nas catacumbas, sem fórmulas de concílios, dogmas estranhos e vestes faustosas. A Palavra nua e crua, sem o filtro dos carismas, floreados ou truques de iluminação.

Pelo alinhamento passaram consagrados e inesperados, como Nuno Júdice, o inevitável Herberto Helder, José Tolentino Mendonça, poesia com sotaque brasileiro (que incluiu desde Manuel Bandeira a Leonard Cohen) e até a Carta a Portugal de Jorge Sousa Braga. A melhor surpresa chegou no final, pela voz de Filipe Vargas, que optou por uma “mixtape poética” que incluiu Camões, Adília Lopes, Doce, António Variações ou Heróis do Mar, entre muitos outros, o que resultou na perfeição.

Apesar dos avisos iniciais, o inevitável e urgente ruído das luzes fez-se convidado em diversas ocasiões durante aquela hora, confirmando o que já suspeitávamos desde a chegada: beber poeticamente no escuro é uma impossibilidade.

No dia seguinte, 3 de Dezembro, começámos a tarde sob os auspícios de Herberto Helder e da sua “A Morte Sem Mestre”, numa animada conversa entre Bruno Vieira Amaral e Fernando Pinto do Amaral. Com Shakespeare, Cervantes e outros mestres na equação, discutiu-se o valor real dos mestres e a existência de discípulos, em tempos de hiperpartilha e informação instantânea. Saltando para as conclusões, foram cuidadosas e ligeiramente optimistas, com a assunção de posições distintas e complementares.

Fernando Pinto do Amaral veio defender o que de perene sobra à literatura, para além do que a polui. Embora a dialéctica mestre/discípulo se tenha alterado, talvez irreversivelmente, os mestres ainda existem, apesar de uma forte dissipação da identidade autoral, essencial nos últimos dois séculos. No entanto, a presença de uma voz distintiva “com capacidade para ser como o paciente zero nas epidemias” mantém-se fulcral à relevância da literatura, assim como o desiderato de chegar a um “novo partilhável”, entre os extremos do “bestseller de aeroporto” e o registo “autista”, interessante apenas ao autor e a quem o rodeie. Destacou também a importância dos nichos literários, onde é possível discorrer sobre determinados ângulos concretos da actualidade com relativo sucesso, citando como exemplo o recém-lançado “A Gorda”, de Isabela Figueiredo. Como mestres referiu Ruy belo e Herberto Helder.

Bruno Vieira Amaral, descontraído e com o seu tom habitual de quem não tem nada a perder, abriu as hostilidades com a constatação de que hoje ninguém quer carregar o peso de um rótulo de mestre ou lidar com a presunção de ser discípulo. A reverência tornou-se contraproducente, sendo essencial o desafio directo à herança literária dos mestres, sempre com a consciência do passado, que necessariamente a condiciona, consciente ou inconscientemente. Por outro lado, focou a necessidade de evitar que a sombra dos gigantes literários do passado se torne paralisante, relembrando a vantagem dos escritores actuais: escrevem agora, com a possibilidade de acompanhar as mudanças de que também são parte e as reflectirem na sua obra.

A histórica relação vertical entre mestre e discípulo transformou-se numa dominante horizontalidade, com o ocaso da célebre tendência de derrubar as fundações da geração anterior a cada novo movimento literário que despontava.

Quanto aos mestres, Bruno Vieira Amaral preferiu apontar em abstracto “aqueles cuja escrita nos deixa insatisfeitos com a escrita que fazemos.” Destacou a importância de Joyce na morte do “romance balzaquiano”, ao colocar o indivíduo e a sua vida interior no centro da narrativa, o que exigiu novas abordagens, hoje verdadeiras masterclasses para a adaptação de dilemas novos, que são de sempre.

Com o advento de novos meios tecnológicos e a sofisticação das séries de televisão, a literatura perdeu peso. Na actualidade, a intensidade de um tema específico substitui a profusão de temas num mesmo romance. O romance, pela sua flexibilidade (“No romance cabe tudo”, como dizia Cervantes), viu as notícias da sua morte serem claramente exageradas e sobrevive saudável e em constante reinvenção, o que devolve a quem escreve e a quem lê a esperança no futuro da literatura, acompanhada do cuidado em não descurar as lições de quem preparou o caminho hoje trilhado.

Em seguida, sob a pesada égide de Shakespeare e da sua influência no romantismo e no “Amor de Perdição”, ao escritor João Tordo juntou-se o poeta e generoso anfitrião Renato Filipe Cardoso (em substituição de Helena Vasconcelos). Moderados por Pedro Vieira, começaram no Amor e passaram pela Poesia, para terminarem na Morte. Expliquemos, pois então.

João Tordo entrou literalmente a matar, com uma bem-disposta contagem de cadáveres nas peças do Bardo, sempre com números generosos, demonstrando a obsolescência de tal solução dramática nos dias de hoje, em que a morte é invisível. Em pleno Séc. XVI, “morrer de amor” era a solução ideal, senão a única possível perante a adversidade. Aos olhos da interpretação actual, essas mesmas mortes são simbólicas, catalisadoras do sonho e do prolongamento indefinido do Amor. Trocando por miúdos, as emoções são as mesmas, mas os meios de expressão são radicalmente distintos. Com esse aumento exponencial do espectro de soluções dramáticas disponíveis, essa causalidade trágica também se desvaneceu.

O romantismo original encontrou como sucedâneo pós-moderno a diluição entre o mundo interior e o mundo exterior, com o seu paradigma supremo nas omnipresentes redes sociais. Um maior controlo da actualidade tornou o Destino e a Sorte absurdos. No entanto, em termos emocionais e de narração dos mesmos, pouco ou nada mudou, desde que Shakespeare balizou as formas e abordagens às temáticas românticas.

Sobre a autoria e o escritor na sua obra, Tordo vê o romance como uma “possibilidade de completar uma viagem emocional que não fizeste”. No romance, reflecte ainda a sua própria aflição, quando era leitor, de encontrar a personagem perante um dilema. Mas esta forma literária vive precisamente destes dilemas e da recorrência dos erros pelas personagens, colocadas perante uma impossibilidade.

Para Renato Filipe Cardoso, a poesia é uma “forma de o poeta fazer sentido para os outros.” Na sua óptica, há muito de empírico nas experiências literárias. Toda uma sentimentalidade foi pensada e transformada em texto, numa cultura em que tempo é dinheiro e não ócio. O romance discorre sobre o que nos afecta como humanos e é lá que procuramos reencontrar as nossas experiências pessoais. A poesia, pelo contrário, vive do lirismo e do simbolismo.

As redes sociais quebraram o “romance do impossível” (como “Amor de Perdição”) e entraram nas histórias de amor, que podem acontecer a qualquer um. Perdeu-se o fatalismo, porque estes romances têm sempre um final feliz.

Sobre a existência ou obsolescência das correntes literárias, João Tordo focou a individualidade quase endémica dos autores e a inexistência de um movimento geracional, numa época em que “quase nunca estamos em lado algum”. Perdeu-se a noção de pertença a um espaço ou grupo, que partilhava ideias e revia textos, e a noção que possa existir de alguma nova geração portuguesa deriva apenas da imprensa. Impõem-se perguntas como a razão da inexistência de um questionamento sério sobre a utilidade da tecnologia ou, como João Tordo resumiu numa eloquente e inesperada pergunta quase retórica: “O que é que eu faço com as horas antes de morrer?”.

Os inevitáveis riscos das redes sociais surgiram naturalmente. Tordo focou a natural propensão humana para a resposta imediata a determinados estímulos, a necessidade de validação perante uma qualquer carência, a despersonalização do “passo tanto tempo fora de mim que depois me esqueço de quem sou”. Renato Filipe Cardoso focou a dimensão ilusória e quase surreal da rede, em que a acção perde terreno para a intenção e a artificialidade. Quanto à vocação mais comunitária da poesia, o poeta atribuiu a maior partilha do trabalho (em comparação com a ficção) à ausência de retorno financeiro nas edições.

Já depois do jantar seguimos para a conversa em torno da frase bíblica “Tomai todos e Bebei”, onde se pretendia discorrer sobre as afinidades entre vinho, amor e espiritualidade. No painel composto por Daniel Jonas, Frederico Lourenço e António Marujo, a conversa fluiu tranquila e sem grandes sobressaltos. Entre os destaques, a afirmação de Frederico Lourenço de que na Bíblia cada pessoa pode ler o que quer ler e ao mesmo tempo confrontar-se com o que realmente é dito, algo interessante tendo em conta o seu recente trabalho de tradução da Bíblia directamente dos originais gregos. Ou a afirmação de Daniel Jonas “creio em Deus apesar da religião”, a propósito do que hoje significa ser crente.

O melhor momento da noite e quiçá do festival foi a Missa Mal Dita, em que o poeta-feito-frade-de hábito-negro Renato Filipe Cardoso abençoou e levou às lágrimas os presentes na Capela do Solar, com um apanhado da melhor poesia surreal, apimentada, erótica e hilariante dos últimos séculos, entre Bocage, Alberto Pimenta, António Botto, Onofre Varela ou citações do glorioso “Manual de Civilidade Para Meninas Para Uso em Estabelecimentos de Educação” de Pierre Louÿs de 1927, obra intemporal e indispensável em qualquer biblioteca que se preze.

Fica um cheirinho do que por lá se ouviu: “Vi uma mulher afogar-se na piscina do hotel./Atirei-lhe um poema insuflável./Morreu./Desconfiei, por momentos, ser obra/de alguma metáfora furada./Nada disso: a certidão de óbito atestou/iliteracia funcional./Penso, apesar de tudo, que poesia nos pulmões/daria um belo epitáfio.” – Poema de Socorros a Náufragos do livro Estamina Para a Máquina de Lavar Dióspiros (Texto Sentido, 2015), cujo autor é precisamente o frade Mal Dito.

Para o dia da despedida elegemos a conversa entre o poeta Miguel-Manso e Inês Fonseca Santos, moderada pelo simpático e certeiro Tito Couto, acerca do poder trágico da poesia com o título “Descontrai Simão”.

A propósito do poder das palavras, Miguel-Manso focou-se especificamente na palavra poética defendendo que, apesar de a palavra construir a realidade, a “poesia é um aparte disso”, com menos público e consequentemente com menor impacto. Inês Fonseca Santos lembrou a perseguição ao grupo do Café Gelo, o “medo de alguém que produzisse um discurso” de oposição ao poder.

Miguel-Manso, perante o desafio de uma definição de poesia, escolheu apontá-la como “meio de mexer noutras coisas”, dramas pessoais, tragédias íntimas, gerir a dor que delas deriva, mas também falar de Amor, escrever apaixonado.

Para Inês Fonseca Santos, a poesia surge como um modo de manter intacta uma zona de silêncio face ao que se pretende dizer. Citando-a: “Escritas no poema (as palavras), abrem-se a significados e escondem também. São movimentos simultâneos.”

A sessão terminou com dois poemas. Miguel-Manso recordou Leonard Cohen com o seu “Poema do Cornudo” e Inês Fonseca Santos leu o poema “Casa”, de uma antologia homónima.

Terminado o evento, em que a organização da Booktailors foi inexcedível, em termos de conforto de participantes e público, rigor nos horários e interesse das temáticas abordadas, o balanço é extremamente positivo, com a literatura tratada com o respeito que merece, sem monólogos entediantes ou longas discussões repletas de chavões e inutilidades obscuras. Sem falsos simplismos e atenção ao detalhes, são festivais como este que estimulam a leitura e a (re)descoberta de autores e obras, num ambiente privilegiado, em que a troca de impressões e ideias (ainda) é possível, com tempo e sem o ruído excessivo do quotidiano.

Para o ano há mais.

Tinto no BrancoTinto no Branco 2016

Paulo Ribeiro da Silva

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
  • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

    “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

    30/04/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto