Assinado por Virginia Woolf, “Flush” (Livros do Brasil, 2021) poderia bem ser o livro de cabeceira de Inês Sousa Real, a actual líder do PAN (Partido pelos Animais e pela Natureza). Para quem se habitou a ver em Woolf a dominadora do fluxo de consciência, autora de obras maiores como “Mrs. Dalloway” (1925), “To the Lighthouse” (1927) ou “Orlando: A Biography” (1928), “Flush” não deixará de se parecer com um objecto literário pouco identificável: a biografia de Flush, um cocker spaniel descendente da mais nobre linhagem que, para além das virtudes associadas a uma linha genealógica tão considerada, parece ter o dom de compreender as emoções humanas.
É difícil catalogar este estranho objecto, misto de biografia, romance e livro infanto-juvenil para os mais crescidos, escrito a partir da correspondência de Elizabeth Barrett Browning, poetisa inglesa da época vitoriana – que, na sua obra, nos contou também a sua história de amor com o marido, o também poeta Robert Browning.
“É universalmente admitido que a família de que o protagonista destas memórias declara descender é uma das mais antigas. Não é, pois, estranho que a origem do próprio nome de tenha perdido na obscuridade”. É desta forma que Woolf nos apresenta a Flush, divertindo-se num périplo geográfico onde vai inventando a origem dos cocker spaniel: será Espanha baptizada e partir do cartaginês Span, que significa coelho, sendo então Hispânia ou a Terra dos Coelhos? Daí damos um salto até ao País de Gales, onde o spaniel já lá mora no século X, um cão de valor e reputação com lugar garantido ao lado do rei.
Antes de nos apresentar a Flush e ao Spaniel Club, Woolf fala ainda brevemente das sete famílias spaniel famosas, todas derivadas “do spaniel original dos dias pré-históricos mas exibindo características distintas, e decerto reclamando privilégios distintos”. Uma forma fabulástica de descrever a sociedade inglesa de então, também ela bem estratificada em famílias humanas de spaniels e outras raças.
Flush, nascido por volta de 1842, pertence à família Mitford, tendo sido baptizado a partir de um poema de Browning intitulado “To Flush, My Dog”. A partir do dia em que se cruzaram, a vida de ambos transformou-se, celebrada de forma magistral por Woolf: “Entre eles abria-se o maior abismo que pode separar um ser de outro. Ela falava. Ele era mudo. Ela era mulher; ele era cão. Assim firmemente unidos, assim imensamente divididos, remiraram-se. Depois Flush subiu para o sofá de um salto e deitou-se onde para sempre se deitaria desse momento em diante – na manta aos pés de Miss Barrett”.
A partir da relação de Elizabeth Browning com Flush, Virginia Woolf oferece ao leitor um vislumbre da biografia de Browning, como a sua relação com Mr. Browning, que caminhou do secretismo à plenitude, ou os tempos em que se sentiu “um pássaro na sua gaiola”, passando de um estado doentio à exuberância, vivida em pleno por terras italianas. Há, também, um olhar sobre a sociedade da época, onde se sente o terror à pobreza, se demarca a tinta permanente as classes sociais e se mergulha no vazio da aristocracia, encontrando-se pelo caminho excertos do diário e das cartas de Browning.
Esta edição da Livros do Brasil, servida em capa dura, surge acompanhada das ilustrações de Iratxe López de Munáin, o que lhe confere o ar de um ilustrado álbum de época.
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