“Não lhe doía nada, não lhe doía nada. As dores tinham sido aos cinquenta, aos sessenta, aos setenta. Aos oitenta desistira de sofrer. Tinha as dores como se fossem de outro, com cerimónia, com indiferença. (…) A morte já passou, só falta morrer.”
Se daqui a uns anos tivermos de eleger uma lista de livros que mostrem o mal que a educação religiosa exacerbada pode fazer à cabeça, “Florinhas de Soror Nada” (D. Quixote, 2018), o mais recente romance de Luísa Costa Gomes, estará certamente entre as escolhas mais óbvias.
Desde miúda e graças a uma austeridade com que nem Passos Coelho teria sonhado, Teresa tudo faz para ser santa, tratando de afastar o livre arbítrio, o pecado e as distrações da vida: tinha visões, fazia jejuns, chorava aflita, morria de pena, tapava o espelho do quarto com um pano negro para “evitar toda a classe de pecados da vaidade“, cortava o cabelo de forma desarranjada “para desencorajar potenciais maridos“. Até comer era algo que roçava o sacrifício.
Alguém que “representou durante anos um auto da sagrada família da sua invenção” e que, nesta existência labiríntica, começou a mostrar claros sinais de masoquismo, de apreço pela dor própria, sobretudo aquela que deixava marcas profundas. E que elaborou um esquema calculado de confissões, “de acordo com a tabela de penitências e os caprichos do sacerdote“.
A dúvida, porém, surge bem cedo, apesar de só mais para a frente na linha temporal surgir a ruptura com a fé católica: “Onde estava ele, o amor de Deus de que todas as irmãs traziam a boca cheia, onde estava esse amor delas, incapazes de a protegerem, de a consolarem da ausência, de lhe mostrarem a sua compaixão“.
Com a sombra de Tersa d’Ávila e de Francisco de Assis, Teresa Costa Gomes conta-nos uma história singular de rebeldia de uma santa que não o quer ser, que vai da casa familiar ao colégio de freiras – e daí para o mundo. Tudo isto enquanto nos vai servindo episódios incríveis da vida de alguns santos, a maioria deles ausente dos manuais religiosos.
Uma viagem sempre a caminho do fundo que, no final, regressa ao ponto de partida – à velhice que já é morte, aos filhos já sem tempo para cuidarem de perto, a uma zanga com o mundo que só encontra consolo num mantra: “Porque tudo sofre minha gente, tudo acaba por morrer“. Um romance curto, visceral e tremendamente agitador, da literatura como catarse e expiação.
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