“Surpreendo-me teres concordado em fazer isso, dado que há muito que não dás as entrevistas”. As palavras e o espanto pertencem a Seán O’Hagan, escritor no The Observer e crítico de fotografia no The Guardian, depois de ter visto Nick Cave aceitar o seu repto. Um repto que consistia em realizar uma série de entrevistas com vista à publicação de um livro, debruçado sobre a vida interior de Nick Cave e o processo criativo que leva à escrita de letras e ao nascimento das suas canções. Nick Cave que, diga-se, nem é grande fã de entrevistas: “De um modo geral, as entrevistas não prestam para nada. A sério. Deixam-te completamente esgotado. A sério”.
O resultado dá pelo nome de “Fé, Esperança e Carnificina” (Relógio D’Água, 2022), escrito a partir de mais de quarenta horas de conversas íntimas, que nos mostra um Nick Cave muito diferente de quando, há muitas vidas atrás, surgiu na companhia dos Birthday Party, correndo então o mito de que chegava a escrever com o seu próprio sangue – rumores que ajudaram a alimentar uma lenda, estatuto que se mantém inalterável mesmo depois de a perda e a acalmia se ter instalado. “O Arthur morreu e tudo mudou”, diz a dado momento sobre a morte do filho de 15 anos, uma morte que vai pairando como uma sombra, ora negra ora luminosa, nos discos que se sucederam desde finais de 2015.
Ao longo de cerca de 300 páginas, são vários os temas dissecados por Cave e O’Hagan, ainda que a crença, o sofrimento e o amor sejam transversais: a importância de ter, na escrita de canções, a companhia de Warren Ellis; a “relação absolutamente impecável” que passou a ter com as suas palavras, confessando não pensar escrever canções “a sério” num futuro próximo; o enquadramento mental que conduziu Cave e Ellis a “Ghosteen”, disco que se tornou “um mundo imaginado onde o Arthur poderia estar”; a sua posição de crente, mesmo quando a sua música era caótica, procurando descobrir “alguma espécie de lar espiritual”; o aspecto profético de muitas das canções, sobretudo algumas do alinhamento de “Skeleton Tree”; o sentimento de reverência que a música pode oferecer; um auto-balanço do que mudou desde os tempos dos Birthday Party a um disco como “Skeleton Tree”; o papel que Blixa Bargeld desempenhou na sua vida; a importância das primeiras canções que escutamos, que para Cave “vivem na tua corrente sanguínea”; o questionamento do papel da ficção; o volte-face na forma em como passou a posicionar trabalho e família; a criação do The Red Hand Files, um canal intimista com os seus fãs que continua a ser alimentado nos dias que correm – “Eles salvaram a minha vida”; o fim – ou pelo menos a constatação – da sua egomania; o regresso de Susie, a sua mulher, ao mundo após uma perda irreparável, “a coisa mais comovente que alguma vez testemunhei”; ou, quase sempre, a eterna procura da absolvição, da parte de alguém que é espiritual mesmo sem ter um Deus a quem rezar.
Seja para fãs confessos, meros curiosos ou para quem queira mergulhar no melhor da história da música recente, “Fé, Esperança e Carnificina” é um livro que dá a conhecer a forma como Nick Cave tem tentado superar o luto, tendo-so reencontrado com a vida após uma morte sem remissão. Uma dramática transformação captada de forma exemplar por Seán O’Hagan.
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