“Faina” (Gradiva, 2024), de Marta Pais Oliveira (Gradiva, 2024), é um romance sobre uma comunidade piscatória no início do século XX, e a arte da sobrevivência em torno do mar. O confronto entre a modernidade e a tradição acontece em vários momentos, com especial acuidade quando se perspectiva a abertura de uma fábrica de conservas que activa esperanças e medos. Para muitos, a esperança de evitarem ter o mar como único destino; para outros, o medo de verem quebrada a ligação dos mais novos à praia e à pesca. O mar é o elemento central, acompanhado por personagens que compõem a comunidade vareira, o orgulho local, a identidade cultural e a resiliência de um povo, marcado pela pesca e pelas tradições marítimas.
A narrativa de Marta Pais Oliveira tem vida e é contagiante, como os solavancos da cabeça e do saltitar de uma criança ou do balancear do mar cachão e da correria das gentes em terra. Fica-se tonto, mas sente-se movimento e intensidade, como se estivéssemos dentro da sua caixa mágica onde pululam muitas vidas e muitos desassossegos. “Faina” tem um ritmo e um estilo que expressa bem a energia que caracteriza o quotidiano de uma comunidade. Há identidade e ousadia na prosa, que faz uso de uma escrita original e estimulante, circunstancialmente metafórica e prenhe de simbolismo, inspiradora de divagações e alucinações dos sentidos de quem vive o mar como uma dimensão exigente e única.
Alcunhas, ritos de iniciação, esquemas de sobrevivência, ambivalência entre o dever de gratidão e a aceitação de uma sina. Estamos perante um livro composto por gentes diferentes das gentes habituais num mundo estereotipado. São gentes do mar, mesmo sem embarcarem. São gentes da faina, que gravitam uma vida feita de sonhos, sofrimento, dizeres e afazeres que outros desdenham. Pululam personagens únicas, retratadas com mestria, fazendo uso de um humor satírico do qual se extraem mensagens impactantes. Gente que sabe ler o mar e sobreviver – nem demasiados medrosos, nem pouco temerosos, um equilíbrio que requer atenção aos mais ínfimos pormenores, aos sons das ondas, à cor das águas, ao movimento dos peixes, a tudo que fale pelo mar e comunique com quem dele vive.
“Nunca se vira as costas ao mar”. Literal e metaforicamente, esta máxima impõe respeito aos que embarcam e aos que ficam em terra; ai daquele que se atreva a preteri-lo, males e misérias esperá-lo-ão, porque o respeito e a veneração são os pilares da sobrevivência naquele mundo. “Faina” é uma ode à vida do mar, às comunidades piscatórias e, em particular, à arte xávega.

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Marta Pais Oliveira (Porto, 1990) escreve ficção, poesia e textos para ópera e teatro. Publicou em 2021 o seu primeiro romance, “Escavadoras”, vencedor do Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís. Seguiram-se os contos “O homem na rotunda” e “Quando Virmos o Mar”. Com o conto “Medula” recebeu o VIII Prémio Nortear da Eurorregião Galicia – Norte de Portugal. Escreveu os libretos “Maria Magola”, “Madrugada: As razões de um movimento” e o teatro musical “O Guarda-Rios Mágico”. Colabora com textos em diversas publicações. Acredita no poder e na liberdade da palavra.
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