Berlim, 1918. A Grande Guerra terminou. À capital e províncias chegam comboios com milhares de soldados vencidos, para quem a vida civil jamais seria a mesma, após meses a fio a privar com a morte e podridão nas trincheiras.
Hans Stern, reputado cirurgião berlinense, havia deixado a sua família e suspendido a carreira para servir o Império. Devolvido ao conforto do seu lar e aos braços carinhosos da sua jovem esposa, é hostilmente recebido pelo seu cão, que o morde, parecendo não reconhecer o dono de outrora. Uma acção instintivamente justificada, segundo o narrador e protagonista, uma vez que o próprio Hans se convenceu que vive num corpo que não lhe pertence, crendo ter roubado a identidade a um morto no campo de batalha.

“Eu?” (Livros do Brasil, 2025), obra expressionista de Peter Flamm (pseudónimo de Erich Mosse), é um monólogo angustiante de um homem feito de outros, que reata a sua vida em sociedade, ininterruptamente assombrado pelos horrores da Primeira Guerra Mundial.
Neste romance febril que fervilha entre os domínios da realidade e do delírio, partilhamos os suores frios do protagonista, sentado no banco dos réus, enquanto procuramos desvendar os motivos do crime, identificar o culpado e, no fundo, descobrir quem realmente nos conduz por estas páginas.
Rotular este romance apenas como drama existencial será, no mínimo, redutor. Para além dos temas kafkianos da alienação e fragmentação da identidade, “Eu?” esconde enigmas perturbadores e incorpora elementos de terror psíquico numa curta mas vertiginosa trama, imprópria para leitores taquicárdicos.
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