“Saberei algum dia contar outra coisa que não a minha história?”, questiona Pierre Drieu La Rochelle (1893-1945) no início de “Estado Civil” (E-Primatur, 2024). A pergunta é pertinente, pois em 1921, aquando da primeira publicação desta autobiografia, o autor francês contava apenas 28 anos, mas tinha plena noção do quanto os traumas de infância ensombraram o seu desenvolvimento como homem e escritor.
Não sendo propriamente uma narração do passado, o texto pode ser descrito como uma reflexão acerca da formação de uma identidade e a busca de um lugar no mundo, no meio de uma realidade triste, que transformará o autor num adulto desencontrado do seu presente: “nasci demasiado cedo, um pouco antes do meu tempo”.
Quando questiona se a sua infância foi alegre, conclui que “é possível que tenha sido preenchida por um contentamento vegetal que está tão longe da felicidade lúcida como da tristeza que corrói a alma”. Ao recuar o mais longe que a sua consciência permite, até aos três anos de idade, reúne memórias fragmentadas e impressões sensoriais de um ambiente rural, mas assombra-o a perplexidade de ter começado a existir antes de ter conhecimento de si próprio. Sobressaem os medos de um menino angustiado, filho de uma mãe adorada, jovem e bonita, que o deixa frequentemente só, e de um pai que raramente vê, cuja intervenção se resume a zombarias tão brutais que o deixam abatido, mas a quem teme “com uma ternura frouxa de escravo que, em segredo, estima o seu senhor”. O quadro familiar é completado por um avô que o afasta zelosamente de perigos reais e imaginários – ensinando -o a ter medo de tudo e isolando-o das outras crianças – e por uma avó tiranizada pelo marido, que usa o neto “para a ressarcir das suas decepções, da sua carência de vivências”, estimulando o apetite romanesco da criança com uma admiração fervorosa por Napoleão: “Conheci Napoleão antes de França, antes de Deus, antes de mim”, afirma La Rochelle.
Aos 8 anos, sem irmãos nem amigos, alimenta-se de sonhos, mas as pressões da professora levam-no a começar a preocupar-se com as exigências da sociedade. Dos doze aos quinze, possuído pelo espírito adolescente colectivo da subversão, vive “licencioso, berrão, trocista e revoltado”. Ainda assim, sente que o seu espírito nunca se libertará do lar familiar.
A editora complementa o texto com dados biográficos relevantes que o autor não explicita. Entre eles, incluem-se os excessos do pai, a partida da mãe e os ferimentos sucessivamente sofridos pelo jovem Pierre durante a Primeira Guerra Mundial – para não falar de factos posteriores à escrita do texto, como a admiração por Hitler e o colaboracionismo durante a ocupação alemã de França, que o levou ao suicídio. A sua percepção de uma suposta mediocridade francesa perante os Estados Unidos da América e impérios como o britânico, o alemão, ou o russo, já está aqui patente, quando discorre sobre o patriotismo. Por mais que oscilasse entre ideologias e movimentos estéticos, entende-se que dificilmente se libertaria de velhos fantasmas, ainda que tentasse pela escrita fixar fora de si tudo aquilo de que desejava separar-se.
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