Das coisas nascem coisas. Das histórias nascem histórias, das histórias nascem ideias, das ideias nascem leituras, nascem viagens e, de novo, outras histórias, reais ou inventadas, como em “As Mil e Uma Noites”, contos narrados por Xerazade ao cruel sultão, seu esposo, na tentativa de salvar a vida. Uma obra que ilustra bem o subtítulo escolhido para “Esta Distante Proximidade” (Quetzal, 2015), de Rebecca Solnit: O Poder Redentor das Histórias. Ou, se quisermos, o poder de sobrevivência humana que existe dentro das histórias – as histórias da nossa vida.
Primeiro livro de Rebecca Solnit editado em Portugal, “Esta Distante Proximidade” é uma boneca russa de onde sai sempre uma outra que se desenvolve. Uma narrativa cativante e errática que salta de tema em tema como a própria vida. Uma agradável mistura de contos de carácter autobiográfico e ensaios.
No começo existem damascos provenientes do jardim da mãe, que se afoga na doença do esquecimento, e todos os damascos são despejados no quarto da filha, exigindo uma solução e um sentido a dar a esse acontecimento.
Trata-se de uma obra que se lê como um boomerang lançando, a cada página, qualquer coisa que mais tarde regressará. Lança perplexidades, ideias, angústias, vontades, frustrações, que se aprofundam e voltam mais resolvidas ou iluminadas.
O mundo entra n`”Esta Distante Proximidade” por vários lados e é sempre objecto de curiosidade e trabalho sobre o deslumbramento que provoca. A mãe vai-se perdendo no Alzheimer e requer, da filha, cuidados maternais e o reconstruir da relação tormentosa e estragada.
Começa-se pelos damascos. Eles colocam um desafio, uma adversidade para vencer como acontece nos contos de fadas que são, muitas vezes, mais do que histórias de encantar, histórias de terror e absurdo, mais sérias do que parecem. E vão surgindo obras literárias, umas atrás de outras que se contemplam. “Os escritores e os livros são solidões em que nos reunimos“. “Frankenstein”, de Mary Shelley, livro também ele construído à maneira de uma boneca russa, “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson, ou “O Retrato de Dorian Grey”, de Oscar Wilde. Os monstros, o bem e o mal, a beleza e a fealdade, o jogo dos espelhos e o mundo das sombras.
Existem muitas viagens neste livro, reais e literárias. Como a de Che Guevara e o seu amigo Granado no filme “Diários de Che Guevara”, em que ambos se lançam numa expedição de moto pelo continente americano, um Ernesto Guevara menino mimado, o médico e o revolucionário. E de novo a doença, a lepra neste caso, que Guevara estuda.
A doença é um tema forte neste livro. A doença mental e o poema “Uivo”, de Allen Gingsberg, dedicado ao amigo Carl Solomon enclausurado num hospital psiquiátrico. A solidão e a prisão da doença. O embotamento psíquico como estratégia de sobrevivência a catástrofes extremas. A doença oncológica da própria narradora, que dela sai viajando para a Islândia.
A viagem é outro tema central. O gelo é um outro. As histórias sobre o gelo são arrepiantes em todos os sentidos, como a do jovem judeu dinamarquês Peter Freuchen que, deixado sozinho numa cabana no Nordeste da Gronelândia a recolher dados meteorológicos, com os lobos esfaimados lá fora à sua espera, faz crescer o gelo agarrado às paredes da casa por efeito da sua própria respiração, até quase não haver espaço para ele. A história de gelo e canibalismo de Atagutaluk. O gelo que consegue, por si só, fazer o abrigo e transformar restos e lixo em objectos utilizáveis como trenós.
Voltamos à doença da mãe que evolui para o intolerável e o inevitável. Na cozinha, pensando que destino dar aos damascos, encontra-se a receita perfeita para fazer compotas, a arte das conservas que resulta em presentes que se oferecem, que ligam factos, objectos e pessoas.
E eis que, pela segunda vez, surge o convite dirigido à nossa contadora para descer de canoa o Grande Canyon: “O que fazer quando o nosso desejo é inesperadamente atendido?” Resposta: dizer sim, vencendo os medos e dando a nós próprios a oportunidade de experimentar os nossos sonhos. Ou, citando, “Nunca digas não a uma aventura sem uma razão realmente boa.”
E assim, por fim, descemos perigosamente o Grande Canyon, aventura descrita por esta contadora de histórias que escreve como quem, com muita arte, conversa intimamente com o leitor. E as conversas são como as cerejas. Ou, neste caso, alperces.
Escritora e ensaísta americana, nascida em 1961, autora de mais de uma dezena de títulos, Rebecca Solnit colabora regularmente com várias revistas. É activista em questões ambientais e dos direitos humanos. Foi galardoada com os prémios National Book Critics Circle Award e Mary Lynton History Prize.
Sem Comentários