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“Esta Distante Proximidade” | Rebecca Solnit

Por Isolina Jarro · Em 01/04/2016

Das coisas nascem coisas. Das histórias nascem histórias, das histórias nascem ideias, das ideias nascem leituras, nascem viagens e, de novo, outras histórias, reais ou inventadas, como em “As Mil e Uma Noites”, contos narrados por Xerazade ao cruel sultão, seu esposo, na tentativa de salvar a vida. Uma obra que ilustra bem o subtítulo escolhido para “Esta Distante Proximidade” (Quetzal, 2015), de Rebecca Solnit: O Poder Redentor das Histórias. Ou, se quisermos, o poder de sobrevivência humana que existe dentro das histórias – as histórias da nossa vida.

Primeiro livro de Rebecca Solnit editado em Portugal, “Esta Distante Proximidade” é uma boneca russa de onde sai sempre uma outra que se desenvolve. Uma narrativa cativante e errática que salta de tema em tema como a própria vida. Uma agradável mistura de contos de carácter autobiográfico e ensaios.

No começo existem damascos provenientes do jardim da mãe, que se afoga na doença do esquecimento, e todos os damascos são despejados no quarto da filha, exigindo uma solução e um sentido a dar a esse acontecimento.

Trata-se de uma obra que se lê como um boomerang lançando, a cada página, qualquer coisa que mais tarde regressará. Lança perplexidades, ideias, angústias, vontades, frustrações, que se aprofundam e voltam mais resolvidas ou iluminadas.

O mundo entra n`”Esta Distante Proximidade” por vários lados e é sempre objecto de curiosidade e trabalho sobre o deslumbramento que provoca. A mãe vai-se perdendo no Alzheimer e requer, da filha, cuidados maternais e o reconstruir da relação tormentosa e estragada.

Começa-se pelos damascos. Eles colocam um desafio, uma adversidade para vencer como acontece nos contos de fadas que são, muitas vezes, mais do que histórias de encantar, histórias de terror e absurdo, mais sérias do que parecem. E vão surgindo obras literárias, umas atrás de outras que se contemplam. “Os escritores e os livros são solidões em que nos reunimos“. “Frankenstein”, de Mary Shelley, livro também ele construído à maneira de uma boneca russa,  “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson,  ou “O Retrato de Dorian Grey”, de Oscar Wilde. Os monstros, o bem e o mal, a beleza e a fealdade, o jogo dos espelhos e o mundo das sombras.

Existem muitas viagens neste livro, reais e literárias. Como a de Che Guevara e o seu amigo Granado no filme “Diários de Che Guevara”, em que ambos se lançam numa expedição de moto pelo continente americano, um Ernesto Guevara menino mimado, o médico e o revolucionário. E de novo a doença, a lepra neste caso, que Guevara estuda.

A doença é um tema forte neste livro. A doença mental e o poema “Uivo”, de Allen Gingsberg, dedicado ao amigo Carl Solomon enclausurado num hospital psiquiátrico. A solidão e a prisão da doença. O embotamento psíquico como estratégia de sobrevivência a catástrofes extremas. A doença oncológica da própria narradora, que dela sai viajando para a Islândia.

Esta Distante Proximidade, Quetzal, Rebecca Solnit, Deus Me LivroA viagem é outro tema central. O gelo é um outro. As histórias sobre o gelo são arrepiantes em todos os sentidos, como a do jovem judeu dinamarquês Peter Freuchen que, deixado sozinho numa cabana no Nordeste da Gronelândia a recolher dados meteorológicos, com os lobos esfaimados lá fora à sua espera, faz crescer o gelo agarrado às paredes da casa por efeito da sua própria respiração, até quase não haver espaço para ele. A história de gelo e canibalismo de Atagutaluk. O gelo que consegue, por si só, fazer o abrigo e transformar restos e lixo em objectos utilizáveis como trenós.

Voltamos à doença da mãe que evolui para o intolerável e o inevitável. Na cozinha, pensando que destino dar aos damascos, encontra-se a receita perfeita para fazer compotas, a arte das conservas que resulta em presentes que se oferecem, que ligam factos, objectos e pessoas.

E eis que, pela segunda vez, surge o convite dirigido à nossa contadora para descer de canoa o Grande Canyon: “O que fazer quando o nosso desejo é inesperadamente atendido?” Resposta: dizer sim, vencendo os medos e dando a nós próprios a oportunidade de experimentar os nossos sonhos. Ou, citando, “Nunca digas não a uma aventura sem uma razão realmente boa.”

E assim, por fim, descemos perigosamente o Grande Canyon, aventura descrita por esta contadora de histórias que escreve como quem, com muita arte, conversa intimamente com o leitor. E as conversas são como as cerejas. Ou, neste caso, alperces.

 

 

Escritora e ensaísta americana, nascida em 1961, autora de mais de uma dezena de títulos, Rebecca Solnit colabora regularmente com várias revistas. É activista em questões ambientais e dos direitos humanos. Foi galardoada com os prémios National Book Critics Circle Award e Mary Lynton History Prize.

Esta Distante ProximidadeQuetzalRebecca Solnit

Isolina Jarro

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