“Descobrimos a verdade, e a verdade não faz sentido.”
G.K. Chesterton
Começamos pelo fim, digamos assim. A descoberta da verdade. Tal resolução não nos salva, não sara as feridas que o tempo acumulou, não encerra a máscara que usámos. É apenas a verdade e, muitos anos depois, que importância tem? Que sentido traz ao agora?
“Sempre acreditei que a verdade, na ficção como na vida, nasce às vezes do que não tem sentido e oferece-se-nos como um presente.”
A verdade pode e é, muitas vezes, asséptica, testemunhal e até convencional. Então para que a queremos? Será o desejo da verdade uma veleidade da memória? Uma exigência das reminiscências e rasteiras que a memória nos passa? Que verdade vem com a memória? Quantas nuances tem a vida de nos dar para satisfazer a cumplicidade criativa a que a memória apela?
É nessa cumplicidade criativa que “Essa puta tão distinta” (Dom Quixote, 2016), de Juan Marsé, se insere e se torna peculiar. É preciso descodificar e descobrir os factos verídicos de um crime, resolvido com contornos menos transparentes, para produzir um guião para um realizador caprichoso. Um escritor reconhecido, mas relutante, decide aceitar o trabalho e proceder à tal investigação, tanto a documentalista como a presencial, já que o assassino ainda é vivo. Fermín Sicart passa então a encontrar-se com o escritor e a sua cinéfila empregada e vão libertando, aos poucos, doses de informação para uso doméstico.
O livro demora-se, o guião atrasa-se e o leitor (talvez) vai perdendo o fôlego, e a certa parte pensa em ir ver ou rever “Gilda”, filme que estava a ser projectado aquando do homicídio no cinema Delícias. Barcelona, 1946.
Verdade seja dita que o rumo que o livro segue é, infelizmente, decrescente. Começa com todo o impacto, como se de um ataque emocional se tratasse, promovendo uma leitura, inicialmente, imparável. No entanto, a distorção inicial que motiva o leitor torna-se arriscada ao continuar, pois já não surpreende. Vale-nos sempre a azáfama cinéfila e capítulos com trechos fabulosos: as considerações sobre a palavra e a ligação à política, as cenas pensadas para o potencial filme ou as que descrevem o “Gilda”, são partes extremamente bem conseguidas.
“(…)até que comecei a perguntar-me quanto de fantasia haveria na sua melancólica e magoada evocação. (…) numa memória sonâmbula como a dele, reelaborada por instâncias alheias tão suspeitas e nefastas, as incongruências, os lapsos e os enganos podiam ter tanto ou mais interesse que as verdades (…) Agora, enquanto estava a ouvi-lo, pensei que o seu infeliz histórico clínico desmentida aquele célebre máxima de Friedrich Richter segundo a qual a memória é o único paraíso de onde não podemos ser expulsos.”
Será a memória um paraíso? Impossível contornar esta pergunta, que ressoa constantemente no leitor durante todo o livro.
“Quanto ao resto, eu sabia perfeitamente que recordar é interpretar, é ver as coisas passadas de uma determinada maneira.”
A narrativa segue entre relatórios, apresentação de personagens, dúvidas e enigmas, mas o lado revelador ou a promessa da verdade e alguns retoques das cenas não são suficientes para garantir o interesse do leitor, que ficará presos ao início – ou ao duplo início – e ao jogo de adivinhação cinéfila, tentando responder a Felicia – talvez uma das personagens mais interessantes. Ela ou o potencial que há em Encarnita.
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