“ – A tua mãe é mesmo tola! Ele não é nada o nosso pai, é pai do Arash. Como é possível que não perceba isso, ela que sabe falar, é tão esperta e consegue compreender aquilo que nós queremos? Quero dizer, não compreende que os filhos bons, saudáveis, bonitos e inteligentes são dos papás e que os filhos estúpidos, feios e doentes, que não sabem falar, são filhos das mamãs?”
Pelas mãos da romancista e socióloga Parinoush Saniee chega-nos “Escondi a Minha Voz” (Bertrand Editora , 2016), um livro com o Irão como pano de fundo mas cujo drama ultrapassa qualquer barreira geográfica, encaixando-se de forma totalmente plausível, por exemplo, no nosso país.
Shahab tem quatro anos mas ainda não começou a falar. Todos o apelidam de “maluquinho”, termo que a inocente criança começa por achar carinhoso, até ao dia em que percebe que “ser maluquinho não era, de facto, uma coisa boa.” Começa então a crescer no seu interior uma grande revolta e um profundo desejo de vingança, especialmente para com o pai que, desde o nascimento da irmã mais nova, o faz sentir cada vez mais à margem.
Incompreendido, subestimado e ridicularizado pela própria família, o menino vive numa luta interna constante, convencendo-se de que não consegue falar, mesmo quando o faz dentro da sua própria cabeça, com os amigos imaginários, a quem está cada vez mais ligado. Falar torna-se uma angústia sem fim, que faz Shahab mergulhar num “mutismo confortável.”
O ponto central do livro é toda a dinâmica familiar que se desenvolve face à “vida muda e triste” de Shahab. Enquanto a mãe sofre, procurando defender sempre a criança não acreditando quando lhe falam em atraso mental, o pai simplesmente não aceita a diferença. Caracterizado como um homem para quem “as demonstrações de afeto eram tolices”, desenvolve um relacionamento frio também com a mulher, como se fosse esta a culpada da mudez da criança. Todas estas tensões passam para Shahab, que vive cada vez mais fechado sobre si mesmo.
Numa narrativa fluída, que intercala o discurso – sempre na primeira pessoa – do menino e da sua mãe, a autora permite-nos entrar na mente das personagens, fazendo-nos perceber como se sentem e o porquê das suas atitudes. A cada página lida, fica clara a infelicidade de cada membro da família, vítimas, cada um à sua maneira, de uma vida que não é a que esperavam viver.
Ainda que transpire algum contexto social e cultural do Irão, desenganem-se os que esperam encontrar aqui um retrato exaustivo do país. Alguns episódios revelam-nos o Irão dos ayatollahs, dos comités revolucionários que perseguem e prendem indiscriminadamente, o que “mais tarde ou mais cedo acontece a todos”, mas o foco são as relações familiares que, ainda que colocadas no contexto daquele país, poderiam extravasar para qualquer outro.
“Era isto que eu, a filha única de Ahmad Ali Khan com mil e uma pretensões, esperava da vida? Eu que queria demonstrar que nada tinha a invejar dos homens, eu que me sentia amargurada com a vida da minha mãe, que tinha de estar sempre a servir o marido e os cinco filhos varões, eu que estudava mais do que todos os meus irmãos, que no trabalho rendia mais do que os outros e toda a gente o reconhecia… mas como tinha podido transformar-me numa banal dona de casa? Não, não era este o papel que eu deseja para mim. Por que razão os meus sonhos se tinham desvanecido como fumo?”
Será só no Irão que as mulheres se subjugam à tirania do marido, tomando atitudes que contrariam o seu coração? Será esta uma realidade assim tão distante da nossa? A resposta é só uma: a dimensão humana aqui presente é mais universal do que à primeira vista aparenta. O Irão é apenas o palco para uma história sobre o poder do amor e a necessidade de se sentir amado.
“Escondi a Minha Voz” é também um guia de parentalidade especialmente concebido para pais demasiado ocupados para expressar afecto pelos filhos, falando na importância de educar com amor e saber gerir as expectativas neles depositadas. Terá o menino a quem o mundo só esperava uma coisa – falar – a capacidade de pintar o seu futuro a cores? Com um toque de ironia, este é um livro carregado de esperança que nos deixa a pensar sobre a nossa relação com os outros e, acima de tudo, com nós próprios. “Coitados dos que têm mente sã e vivem num mundo sem cores.”
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