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Entrevistas da Paris Review 3, Tinta da China, Deus Me Livro
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“Entrevistas da Paris Review 3”

Por Pedro Miguel Silva · Em 06/04/2018

Chegou às livrarias, na recta final do ano passado, “Entrevistas da Paris Review 3” (Tinta da China, 2017), o terceiro volume de uma colectânea de entrevistas publicadas na Paris Review, uma história revista literária que influenciou muito bom leitor e escritor. Uma dúzia de entrevistas que se estendem numa longa linha temporal: tanto encontramos uma a Dorothy Parker, realizada em 1956, como uma conversa entre James Woods e Karl Ove Knausgard, que teve lugar no Festival Literário Norueguês-Americano de 2014.

Alice Munro fala-nos de uma cidade canadiana de 3000 habitantes onde vive a maior parte do ano, recordando que escrevia muito sobre solteironas, que o material sobre a mãe é o mais importante da sua vida – e aquele com que mais facilmente trabalha -, referindo-se aos contos como migalhas, não escondendo o negócio familiar da criação de raposas e de visons, afirmando a importância da paisagem na sua escrita e apontando o momento em que a criação deixa de ser pertença do autor: “Tem de haver um momento em que dizemos, como a um filho: isto já não me pertence”.

A entrevista a Dorothy Parker foi feita em Nova Iorque com “jornais espalhados pelo chão, costeletas encetadas aqui e ali e um boneco de borracha – de garganta rasgada de orelha a orelha”. A autora fala aqui do despedimento da Vanity Fair “por ter opiniões”, da escolha dos nomes das suas personagens “recorrendo à lista telefónica e às colunas de obituários”, dos seus versos como fracos e “horrivelmente datados” e do lugar mágico de onde lhe chega a inspiração: “De precisar de dinheiro, querida”.

Elena Ferrante, aqui ainda com a identidade protegida – menos o facto de se confirmar que era, de facto, uma mulher -, dá aqui a sua primeira entrevista, quase toda ela sobre o processo criativo. Fala da sinceridade como o tormento e o motor de todos os seus projectos literários e do facto de críticos italianos terem atribuído os seus livros a autores diferentes, não deixando de atirar a sua bicada em jeito da defesa do anonimato: “Num mundo onde a formação filológica já quase desapareceu completamente, onde os críticos deixaram de prestar atenção ao estilo, a decisão de não estar presente como autor gera má vontade e este género de fantasia”.

Desta dúzia de entrevistados, George Steiner é sem dúvida o mais falador, discorrendo durante parágrafos seja qual o anzol atirado. Steiner que, aqui, fala da escrita como sendo tão simplesmente boa ou má, recusando a categorização de género: “Esta quase transformou-se numa causa, numa vingança”. E brinca ainda com o acto da escrita, fazendo a ponte com alguns dos gigantes da literatura: “Como é possível, depois de Proust, Joyce, Kafka e Faulkner, alguém sentar-se para escrever um romance?”. Mas nem só de homens vive a galeria dos históricos de Steiner. Já antes disto havia dito que “Jane Austen escrevia melhor do que qualquer homem”.

Henry Miller fala-nos do acto da escrita como algo que é feito longe do papel, naqueles momentos em que não existe caneta – ou teclado – mas apenas a mente para fixar o que será escrito mais tarde: “No fim de contas, a maior parte da escrita faz-se longe da máquina de escrever, longe da secretária. Diria que ocorre nos momentos de sossego e silêncio, enquanto caminhamos, fazemos a barba, jogamos ou coisa no género, ou até quando se fala com alguém que não nos interessa muito”. Discutem-se também movimentos como o dadaísmo ou o surrealismo e as diferenças entre a obscenidade e a pornografia.

O elogio a Philip K. Dick surge pela boca de Emmannuel Carrère, que fala dele como “o Dostoiévski do século vinte, o homem que percebeu tudo” antes de todos os outros. O autor fala das diferenças de escrever na primeira ou na terceira pessoa, bem como sobre o que é um romance: “Ficcional, com personagens e acontecimentos imaginários”. Se ignorarmos esta definição, então defende que os seus livros poderão ser considerados romances.

Em relação a John Steinbeck, a entrevista dá lugar a uma compilação de alguns comentários do escritor, publicados ao longo dos anos muitos – retirados de “A Leste do Paraíso” – e que se movem por áreas e interesses tão diferentes quanto a sorte, os hábitos de trabalho, a técnica, a personagem, os autores, os críticos ou a arte de escrever. Antes disso há uma introdução sumarenta de Nathaniel Benchley, amigo próximo do autor.

Entrevistas da Paris Review 3, Tinta da China, Deus Me LivroO grande Julian Barnes fala da literatura como o ofício de “produzir mentiras grandiosas, belíssimas e bem organizadas que revelem mais verdade do que a mera associação de factos”. Critica igualmente a escrita hereditária de Amis e Waughs, dizendo que “os escritores não são como chefes de pastelaria da família real que transmitem o talento e o cargo de geração em geração”. Barnes revela aqui a sua grande devoção a Flaubert, e dá-nos uma pequena e resumida palestra sobre a diferença entre os romancistas americanos e ingleses.

Quanto ao moderno fenómeno literário conhecido como Karl Ove Knausgard, rejeita nesta conversa com o crítico James Woods que os seus livros tenham implicado uma grande coragem, preferindo antes destacar o desespero e a frustração. E não foge à polémica, falando daquilo que mais entusiasma os homens: “Sempre que vejo uma mulher penso: como seria ir para a cama com ela? Acho que é o primeiro pensamento de todos os homens”. Ainda tenta encostar Woods à parede, mas o crítico acaba por se safar com estilo.

Lydia Davies responde, em poucas linhas, à pergunta para um milhão de euros sobre como ser egoísta sem magoar ninguém: “Nunca casar, viver sozinho e ter longas conversas a meio da noite com um amigo. Sem nunca nos encontrarmos com essa pessoa”.

Susan Sontag fala dos seus livros como educadores sentimentais, e daqueles que alcançam o estatuto de fora de série como algo que “amplia a nossa percepção do potencial da humanidade, do que a natureza humana é, do que se passa no mundo”. Uma escritora que diz escrever sem fim à vista: “Não escrevo por haver um público. Escrevo por haver literatura”.

A encerrar esta dúzia de entrevistas da Paris Review temos W. H. Auden, que pediu para que não fosse utilizado qualquer gravador, mas acreditamos que terá havido pelo menos uma escuta – tal não é a qualidade da suposta transcrição. Auden fala dos poetas de que gosta e daqueles que lhe fizeram mal enquanto autor, descreve os homens como playboys e as mulheres como realistas, fazendo também um retrato muito interessante sobre o casamento: “O problema com esta questão do amor é que um dos parceiros acaba a sentir-se mal por não sentir aquilo que conhece dos livros. Imagino que os casamentos fossem muito mais felizes quando eram arranjados pelos pais. Acho absolutamente essencial que os dois parceiros partilhem o mesmo tipo de sentido de humor e de visão da vida. E, como dizia, Goethe, penso que a celebração dos casamentos devia ser mais calma e humilde, por se tratar do início de alguma coisa. As celebrações espalhafatosas adequam-se mais às conclusões felizes”. Mais um capítulo feliz – e na primeira pessoa – da Literatura.

Entrevistas da Paris Review 3Tinta da China

Pedro Miguel Silva

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