Chegou às livrarias, na recta final do ano passado, “Entrevistas da Paris Review 3” (Tinta da China, 2017), o terceiro volume de uma colectânea de entrevistas publicadas na Paris Review, uma história revista literária que influenciou muito bom leitor e escritor. Uma dúzia de entrevistas que se estendem numa longa linha temporal: tanto encontramos uma a Dorothy Parker, realizada em 1956, como uma conversa entre James Woods e Karl Ove Knausgard, que teve lugar no Festival Literário Norueguês-Americano de 2014.
Alice Munro fala-nos de uma cidade canadiana de 3000 habitantes onde vive a maior parte do ano, recordando que escrevia muito sobre solteironas, que o material sobre a mãe é o mais importante da sua vida – e aquele com que mais facilmente trabalha -, referindo-se aos contos como migalhas, não escondendo o negócio familiar da criação de raposas e de visons, afirmando a importância da paisagem na sua escrita e apontando o momento em que a criação deixa de ser pertença do autor: “Tem de haver um momento em que dizemos, como a um filho: isto já não me pertence”.
A entrevista a Dorothy Parker foi feita em Nova Iorque com “jornais espalhados pelo chão, costeletas encetadas aqui e ali e um boneco de borracha – de garganta rasgada de orelha a orelha”. A autora fala aqui do despedimento da Vanity Fair “por ter opiniões”, da escolha dos nomes das suas personagens “recorrendo à lista telefónica e às colunas de obituários”, dos seus versos como fracos e “horrivelmente datados” e do lugar mágico de onde lhe chega a inspiração: “De precisar de dinheiro, querida”.
Elena Ferrante, aqui ainda com a identidade protegida – menos o facto de se confirmar que era, de facto, uma mulher -, dá aqui a sua primeira entrevista, quase toda ela sobre o processo criativo. Fala da sinceridade como o tormento e o motor de todos os seus projectos literários e do facto de críticos italianos terem atribuído os seus livros a autores diferentes, não deixando de atirar a sua bicada em jeito da defesa do anonimato: “Num mundo onde a formação filológica já quase desapareceu completamente, onde os críticos deixaram de prestar atenção ao estilo, a decisão de não estar presente como autor gera má vontade e este género de fantasia”.
Desta dúzia de entrevistados, George Steiner é sem dúvida o mais falador, discorrendo durante parágrafos seja qual o anzol atirado. Steiner que, aqui, fala da escrita como sendo tão simplesmente boa ou má, recusando a categorização de género: “Esta quase transformou-se numa causa, numa vingança”. E brinca ainda com o acto da escrita, fazendo a ponte com alguns dos gigantes da literatura: “Como é possível, depois de Proust, Joyce, Kafka e Faulkner, alguém sentar-se para escrever um romance?”. Mas nem só de homens vive a galeria dos históricos de Steiner. Já antes disto havia dito que “Jane Austen escrevia melhor do que qualquer homem”.
Henry Miller fala-nos do acto da escrita como algo que é feito longe do papel, naqueles momentos em que não existe caneta – ou teclado – mas apenas a mente para fixar o que será escrito mais tarde: “No fim de contas, a maior parte da escrita faz-se longe da máquina de escrever, longe da secretária. Diria que ocorre nos momentos de sossego e silêncio, enquanto caminhamos, fazemos a barba, jogamos ou coisa no género, ou até quando se fala com alguém que não nos interessa muito”. Discutem-se também movimentos como o dadaísmo ou o surrealismo e as diferenças entre a obscenidade e a pornografia.
O elogio a Philip K. Dick surge pela boca de Emmannuel Carrère, que fala dele como “o Dostoiévski do século vinte, o homem que percebeu tudo” antes de todos os outros. O autor fala das diferenças de escrever na primeira ou na terceira pessoa, bem como sobre o que é um romance: “Ficcional, com personagens e acontecimentos imaginários”. Se ignorarmos esta definição, então defende que os seus livros poderão ser considerados romances.
Em relação a John Steinbeck, a entrevista dá lugar a uma compilação de alguns comentários do escritor, publicados ao longo dos anos muitos – retirados de “A Leste do Paraíso” – e que se movem por áreas e interesses tão diferentes quanto a sorte, os hábitos de trabalho, a técnica, a personagem, os autores, os críticos ou a arte de escrever. Antes disso há uma introdução sumarenta de Nathaniel Benchley, amigo próximo do autor.
O grande Julian Barnes fala da literatura como o ofício de “produzir mentiras grandiosas, belíssimas e bem organizadas que revelem mais verdade do que a mera associação de factos”. Critica igualmente a escrita hereditária de Amis e Waughs, dizendo que “os escritores não são como chefes de pastelaria da família real que transmitem o talento e o cargo de geração em geração”. Barnes revela aqui a sua grande devoção a Flaubert, e dá-nos uma pequena e resumida palestra sobre a diferença entre os romancistas americanos e ingleses.
Quanto ao moderno fenómeno literário conhecido como Karl Ove Knausgard, rejeita nesta conversa com o crítico James Woods que os seus livros tenham implicado uma grande coragem, preferindo antes destacar o desespero e a frustração. E não foge à polémica, falando daquilo que mais entusiasma os homens: “Sempre que vejo uma mulher penso: como seria ir para a cama com ela? Acho que é o primeiro pensamento de todos os homens”. Ainda tenta encostar Woods à parede, mas o crítico acaba por se safar com estilo.
Lydia Davies responde, em poucas linhas, à pergunta para um milhão de euros sobre como ser egoísta sem magoar ninguém: “Nunca casar, viver sozinho e ter longas conversas a meio da noite com um amigo. Sem nunca nos encontrarmos com essa pessoa”.
Susan Sontag fala dos seus livros como educadores sentimentais, e daqueles que alcançam o estatuto de fora de série como algo que “amplia a nossa percepção do potencial da humanidade, do que a natureza humana é, do que se passa no mundo”. Uma escritora que diz escrever sem fim à vista: “Não escrevo por haver um público. Escrevo por haver literatura”.
A encerrar esta dúzia de entrevistas da Paris Review temos W. H. Auden, que pediu para que não fosse utilizado qualquer gravador, mas acreditamos que terá havido pelo menos uma escuta – tal não é a qualidade da suposta transcrição. Auden fala dos poetas de que gosta e daqueles que lhe fizeram mal enquanto autor, descreve os homens como playboys e as mulheres como realistas, fazendo também um retrato muito interessante sobre o casamento: “O problema com esta questão do amor é que um dos parceiros acaba a sentir-se mal por não sentir aquilo que conhece dos livros. Imagino que os casamentos fossem muito mais felizes quando eram arranjados pelos pais. Acho absolutamente essencial que os dois parceiros partilhem o mesmo tipo de sentido de humor e de visão da vida. E, como dizia, Goethe, penso que a celebração dos casamentos devia ser mais calma e humilde, por se tratar do início de alguma coisa. As celebrações espalhafatosas adequam-se mais às conclusões felizes”. Mais um capítulo feliz – e na primeira pessoa – da Literatura.
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