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Baiôa Sem Data para Morrer, Porto Editora, Rui Couceiro, Deus Me Livro, Entrevista
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Entrevista: Rui Couceiro

Por Isabel Daires · Em 10/01/2023

Após alguns anos de trabalho como editor, Rui Couceiro estreia-se no romance com uma obra que revela uma voz verdadeiramente original no panorama actual da literatura portuguesa. Usando como narrador um jovem professor sem colocação e em plena crise existencial, “Baiôa Sem Data Para Morrer” (Porto Editora, 2022) conta a história de um homem já idoso, que luta contra o tempo para salvar a sua aldeia cada vez mais deserta, reabilitando casas vazias na esperança de atrair novos habitantes. Nesta entrevista, o autor fala-nos do que o atraiu para a criação literária, do desenvolvimento desta obra e dos seus projectos para o futuro.

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O Rui Couceiro é, desde 2016, editor na Bertrand, tendo a seu cargo a chancela Contraponto, e publicou em 2022 o seu primeiro livro, “Baiôa Sem Data para Morrer”. O que o atraiu para a criação literária? Em que medida a actividade editorial contribuiu para que se tornasse escritor?

É uma autoanálise difícil de fazer e nem sei se disponho de ferramentas para tal, mas creio que duas circunstâncias, um pouco óbvias, me terão atraído para a escrita mais do que outras. Uma terá que ver com a minha personalidade, dado que senti sempre uma pulsão pela criação. A outra estará relacionada com a minha própria experiência, com as leituras que fiz, porque sempre encontrei na leitura a maior motivação para a escrita. Por outro lado, trabalhar no meio editorial há 16 anos ensinou-me muitas coisas, a vários níveis. Não apenas me tornou um leitor melhor, e ser bom leitor é imprescindível para se ser bom escritor, como me permitiu conhecer todas etapas do processo, o que é naturalmente uma vantagem competitiva. Em todo o caso, também me responsabilizou mais e me levou a tentar publicar mais tarde do que talvez tivesse tentado se não fosse editor.

Na escrita deste livro, desafiou algum conselho que tenha dado aos autores que publica?

Muitos. Fiz muitas coisas ao invés daquilo que recomendaria. Mas isso prende-se, em grande medida, com o facto de eu ser, nesta fase, sobretudo um editor de não ficção e um editor de não ficção que tende a desafiar os autores para desenvolverem conceitos que ele próprio criou. Já como autor de ficção, eu quis sempre oferecer a mim mesmo toda a liberdade possível, porque é como território de liberdade absoluta que entendo a escrita de ficção que gosto de produzir. Os únicos critérios eram os meus, em grande medida os do meu gosto, e não critérios relacionados com aquilo que eu achava que poderia ser mais simples, seduzir mais leitores, ou gerar mais vendas. Para mim, só fazia sentido ir à procura dos meus leitores e não escrever para determinado tipo de leitores.

O que o levou a publicar este livro numa editora diferente da sua?

Não quis publicar na Bertrand, porque é a editora em que trabalho. Eticamente, não me sentiria confortável. É verdade que publiquei dentro do grupo a que pertence a Bertrand, mas noutra empresa, a empresa-mãe, a Porto Editora. A administração, quando soube da minha vontade de publicar um livro meu, transmitiu-me que gostaria que eu o fizesse no grupo e eu não fui insensível a isso, não poderia ser, dado que foi a casa que me permitiu entrar neste meio, em 2006. Para além disso, eu queria muito trabalhar com a Sofia Fraga, editora da Porto Editora que já tinha identificado em mim um ficcionista e me motivara a terminar o livro.

A história desenrola-se em Gorda-e-Feia, uma pequena aldeia do Alentejo profundo. O conhecimento do mundo rural era algo que já possuía, ou que procurou obter para escrever este livro?

A minha bússola aponta muito mais para o interior, para a ruralidade, do que para o litoral e o urbano. Sempre senti um grande apelo telúrico, e isso está evidente no livro, mas também nos contos que fui publicando antes, por isso não houve propriamente necessidade de pesquisa de campo. Os nossos interesses são sempre a matéria mais fácil de manejar do ponto de vista literário.

O seu narrador tem algo de garrettiano, na forma como viaja e pontua a acção com pequenas crónicas que combinam drama e humor. Quais as semelhanças e as diferenças entre a sua perspectiva pessoal e a deste narrador?

Há algo de meu em todas as personagens, como é natural e até desejável, incluindo no narrador. Até porque a individualidade é, a meu ver, o único caminho para o tipo de literatura que quero fazer. Mas isso não significa que o que eu faço não se aproxime de outros autores. E ainda bem que assim é, porque já me ligaram a muitos escritores que admiro. Já não é a primeira vez que associam esse estilo digressivo, por assim dizer, a Garrett, mas também a Machado de Assis, ou até aos autores do chamado romance pícaro. E falamos de autores cujas obras possuem características que eu, enquanto autor, também quis que estivessem presentes nesta narrativa.

O que pode contar-nos acerca das suas fontes de inspiração? Algum dos habitantes de Gorda-e-Feia é baseado numa figura real?

Não propriamente. Baiôa é um nome que pedi emprestado a um velho sucateiro de Palmela, que conheci um dia e com o qual estabeleci uma relação de amizade muito intensa, mas o meu Baiôa nada mais tem dele, além do apelido e do rosto. Vem tudo da observação. A Susan Sontag disse que um escritor é alguém que presta atenção ao mundo e eu concordo. Por isso, há traços de personalidade das minhas personagens que advêm das pessoas que conheço, ou com as quais me relaciono, claro, mas não há nenhuma que seja um retrato de alguém. São misturas, são construções. Algumas têm algo mais de arquétipos, ou protótipos, outras de estereótipos, mas não quis um livro maniqueísta e por isso todas têm zonas cinzentas, como na vida real. Desde logo o narrador, que muitas vezes se envergonha de coisas que diz e faz.

Logo no início, o narrador anuncia que testemunhou a morte de todos os idosos que conheceu em Gorda-e-Feia. Considera que estamos a assistir à morte de um estilo de vida? Foi também sua intenção fazer uma crítica política ao centralismo e ao abandono a que é votado o interior do nosso país?

A sobrecentralização que impera em Portugal foi sem dúvida um dos temas que eu quis que o livro abordasse. Assim como o envelhecimento da população, o abandono a que os velhos e o interior são votados, entre outros. Mas não no sentido de fazer uma crítica, porque não é meu objetivo fazer literatura panfletária. O que eu quero fazer é mimetizar a vida e isso passa por expor realidades. Não quero doutrinar, prefiro tentar fazer retratos. Depois cabe aos olhos e à reflexão de cada um fazerem o resto.

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Os telemóveis e as redes sociais estão muito presentes na história. O narrador reconhece que depende deles de uma forma pouco saudável, mas o certo é que a Internet desempenha um papel importante e positivo na ligação dos habitantes da aldeia ao mundo. Como prevê que evolua a nossa relação com essas tecnologias?

Não há moedas só com cara, ou só com coroa. Eu não vejo necessidade nenhuma de falar das qualidades dessas tecnologias, porque já toda a gente as conhece. Mas sei que muita gente, ou a maioria das pessoas, tem muito pouca noção dos seus malefícios. Por isso, se o meu livro puser um foco no assunto e ajudar os leitores a pensarem, ótimo. Se não o fizer, tudo bem na mesma, porque a intenção primordial não é essa.

Pode adiantar-nos algo acerca dos seus projectos futuros, como autor e como editor?

Como editor, estou muito entusiasmado com o ano que está prestes a começar. Tanto no contexto da Contraponto, de cujo plano editorial destaco, no primeiro trimestre, a biografia de Natália Correia, de Filipa Martins, mas também no que se refere aos autores de que sou editor fora desta chancela, como Miguel Esteves Cardoso, Tolentino Mendonça e até de outros projetos por anunciar. Enquanto autor, estou a trabalhar no meu próximo romance e até ver estou bastante satisfeito. Posso adiantar que a história se passa no Porto e a protagonista é uma mulher.

Foto: Neusa Aires

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Isabel Daires

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2 Commentários

  • Maria José Lopes Pinto da Cruz comentou: 14/11/2023 at 19:44

    Gostava de dizer a Rui Couceiro que fiquei muito sensibilizada, posso mesmo dizer comovida, com a ida dele à prisão, para dialogar com alguns detidos , sobre o seu livro. Vi o « documentário » num programa da RTP.

    Num momento complicado, quer a nível nacional, quer sobretudo internacional, com as guerras na Ucrânia, Palestina, entre outras, inúmeras mortes de refugiados na travessia do Mediterrâneo, etc, sou muito sensível a atitudes solidárias com o sofrimento de outros.

    Resposta
    • Rui Couceiro comentou: 15/11/2023 at 13:10

      Cara Maria José Lopes Pinto da Cruz,
      O responsável pelo site alertou-me para este seu comentário e eu não posso deixar de lhe agradecer as suas palavras simpáticas.
      Muito obrigado.

      Resposta

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