Foi há quase um ano que descobrimos a escrita portentosa de Rafael Gallo, graças ao romance “Dor Fantasma” (Porto Editora, 2023 – ler crítica), vencedor do Prémio Literário José Saramago 2022. Acompanhando o quotidiano e os meandros da mente do seu protagonista, Rômulo Castelo – um pianista excepcional e inquietantemente misantropo, que perde a mão direita num acidente –, vemos como pode ser destruidora a obsessão pela perfeição, sobretudo quando confrontada com a fragilidade do ser humano.
Nesta entrevista, o autor descreve o impacto daquele prémio, explica como surgiu na sua vida a reflexão sobre alguém que sente desaparecer o seu lugar no mundo, comenta o seu livro preferido de Saramago e fala-nos, entre outras coisas, de uma iminente mudança para Lisboa.
Cerca de um ano depois de ter recebido o Prémio Literário José Saramago, que balanço faz do impacto desta distinção na sua vida e na sua produção literária?
É um impacto enorme. Faço questão de conjugar o verbo no presente, porque ele continua. E, realmente, trata-se de algo que mudou o curso da minha vida e isso, por si só, já bastaria para afetar minha produção literária. Para dar alguns exemplos mais concretos: estou em vias de me mudar para Lisboa, pude reescrever meu romance “Rebentar” e publicar uma nova versão, além de encontrar um novo ânimo e nova postura quanto aos próximos livros a serem escritos. E sinto que tenho um novo lugar no mundo, assim como meus livros e seus encontros com leitores e leitoras.
Como crê que se explica o facto de o romance “Dor Fantasma”, que lhe valeu este prémio, ter sido rejeitado por mais de uma editora?
Creio que há muitos motivos para isso. O primeiro é um timing ruim: eu terminei a primeira versão do livro no final de 2019, quando estava prestes a começar a pandemia do covid-19 e tudo ser interrompido, entrar em crise. Além do mais, no caso específico do Brasil, não precisávamos de outro personagem detestável, além daquele que já víamos, todos os dias nas notícias, acrescentar um capítulo difícil à nossa história. Para além de tudo isso, é preciso pensar que eu não era um autor de enorme destaque e, para a literatura brasileira contemporânea, os espaços são restritos nas editoras. Os editores têm que escolher poucos livros para seus cronogramas.
O protagonista deste livro, Rômulo Castelo, é um pianista virtuoso, treinado desde cedo pelo pai para se dedicar inteiramente à sua arte, de uma forma que afectou o seu desenvolvimento social. Rômulo não questiona os sacrifícios que fez, mas nós podemos perguntar: até que ponto vale a pena o sacrifício individual para corresponder ao que é considerado a perfeição – na arte, no desporto, ou em qualquer outra área?
Essa é uma das perguntas centrais do livro e, creio, não existe uma resposta definitiva. Inclusive, porque embora possa haver uma oposição entre os dois lados, eles não são necessariamente excludentes. Há grandes artistas que, até onde sabemos, não negligenciaram as pessoas próximas de si, ou mesmo da sociedade (penso em José Saramago, João Guimarães Rosa, Tom Jobim e outros) e, por outro lado, há pessoas – em especial, homens – quase indiferentes ao próprio núcleo familiar, que não produzem nada de grandioso; apenas têm um emprego regular e ficam em frente à TV ou nos bares. Penso em muito mais nomes deste tipo.
Este protagonista é uma figura revoltante, sob vários aspectos, mas tece considerações interessantes acerca daquilo que considera ser o facilitismo no sistema de ensino e a vacuidade das redes sociais – e acaba por ser perseguido, tanto nas redes como no espaço físico da universidade onde lecciona, pelos militantes do politicamente correcto. Já foi confrontado com alguma situação semelhante? Considera que a pressão do politicamente correcto pode conduzir ao facilitismo?
Eu nunca fui atacado publicamente, em larga escala, mas sim de forma privada (acredito que vá acontecer com todo mundo, em algum momento) e questionado em certos encontros literários, por motivos supostamente ligados a esses temas. Eu gostaria que houvesse um nome diferente para aquilo que é discussão séria e necessária sobre as desigualdades históricas, os preconceitos e tudo que precisamos repensar no trato social (em especial, a grupos tidos como minoritários quanto ao poder de voz) e aquilo que é uma fetichização disso, em nome de sensacionalismos, de se capitalizar atenção (e na era das redes sociais, a atenção é um capital poderoso) ou mesmo de buscar o gozo da acusação e punição do outro. Isso é um mal terrível, inclusive porque funciona contra as lutas que são necessárias no mesmo âmbito.
Rômulo sofre uma amputação que interfere com a sua identidade e o seu lugar no mundo. Como foi que a reflexão sobre estes temas surgiu na sua vida?
Há duas maneiras de responder essa pergunta: a primeira é mais prosaica, e diz respeito ao fato de que em 2016, ano em que comecei a escrever “Dor fantasma”, eu tive uma mudança radical de carreira e de rotina, inclusive, me mudei de cidade. Ainda lido com depressão e foi nesse momento meu primeiro grande episódio. Ali, senti que perdia muito do meu eu. Então, essa ideia, sobre um pianista que deixa de sê-lo, e isso é fundamental para ele, acabou por tomar a dianteira dentre as histórias que eu queria escrever. Mas, para além disso, há muitas outras questões pessoais, e intelectuais, sobre as quais eu queria me debruçar, que fizeram parte da gênese do livro. Em especial, temas relacionados à paternidade, aos vínculos amorosos, às tipicidades da masculinidade e ao modo de vida centrado no desempenho relativo ao trabalho.
Sabemos que teve formação musical, e isso nota-se neste livro. Como ocorreu a transição da música para a escrita?
Eu sempre fui interessado na criação e na imaginação, de várias áreas. Quando criança, gostava de desenhar e de criar histórias em quadrinhos, personagens e tudo mais. Na adolescência, me voltei mais para a música, então tive bandas e compunha músicas, passei a criar com a música. Fiz faculdade de música, trabalhei um pouco nessa área e até hoje, apesar de não ser mais meu ofício, escuto música quase o tempo todo. Mas, a literatura também tem feito parte da minha há tempos, então tudo está unido, de certa forma. Eu gosto de qualquer meio no qual se possa compor algo. E cada vertente oferece possibilidades interessantes.
Noutras entrevistas, mencionou que é fã de José Saramago e que o seu livro preferido dele é “Ensaio sobre a Cegueira”. Seria este o livro que recomendaria a alguém que nunca tivesse lido nada de Saramago e quisesse descobri-lo, ou recomendaria outro título? Qual a razão da escolha?
Sim, seria minha recomendação. Foi o primeiro que li dele, então sei que funciona. Eu fiquei muito impactado com a leitura, foi uma história que não saía da minha cabeça, mesmo quando não estava com o livro nas mãos. E até hoje penso frequentemente sobre ela, mesmo anos depois. E é uma história tão instigante e tão bem conduzida (na minha opinião, a condução narrativa desse romance é perfeita), que acredito que qualquer pessoa interessada em leitura pode adorá-lo. E creio que traz consigo uma alegoria ética muito poderosa. É como se estivesse a humanidade inteira, demonstrada ali. Para mim, tem tudo que se poderia desejar de um livro de primeira grandeza.
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Fotos: Wilian Olivato
1 Commentário
Muito bacana a entrevista! Nunca li nada dele, despertou minha curiosidade.