Apercebendo-se da “crise de valores e de autoconfiança que o ocidente atravessa”, Paulo Moura virou-se para Oriente e partiu à descoberta de um ideal utópico. “Cidades do Sol” (Objectiva, 2021) – com o subtítulo Em busca de utopias nas grandes metrópoles da Ásia – propõe-se a desvendar os desígnios sociais da classe média asiática que, nas últimas décadas, emergiu da pobreza e hoje vive em megacidades, num clima de alucinante ascensão social. De onde vêm, onde querem chegar e como querem viver?
Munido de perguntas, um par de mudas de roupa, caneta e bloco de notas, Paulo Moura viajou pelo Extremo Oriente e recolheu testemunhos de influencers, artistas, filósofos e outras pessoas com quem se cruzou. Muito mais do que um bálsamo literário para ávidos viajantes em tempo de pandemia, “Cidades do Sol” é o diário de bordo do périplo de um jornalista português em busca do sonho oriental.
Tem feito reportagens em zonas de crise por todo o mundo. Estava preparado para o gritante contraste social e pobreza que testemunhou na Índia ou nas Filipinas, por exemplo?
Os contrastes não constituem, infelizmente, uma surpresa. São uma realidade por todo o lado, embora mais visíveis e mais despudorados nos países mais pobres. São chocantes, mas é também chocante a naturalidade com que são vistos em muitos países. Principalmente naqueles que beneficiaram com a globalização e se tornaram ricos nas últimas décadas. Alguns, como é o caso da Índia, tornaram-se grandes potências económicas, mas nem por isso aboliram a pobreza. Dir-se-ia que nem se preocupam muito com isso. A julgar pelo que se vê nas grandes cidades da Índia, não parece haver uma prioridade governamental em erradicar a pobreza. É como se os seres humanos se habituassem a conviver com ela. E é difícil perceber como é que alguém que se liberta da miséria própria não se indigna com a dos outros.
A certa altura, o rapper indiano que entrevistou afirma que “se as pessoas viajassem mais, teriam consciência dos problemas e mudariam o seu comportamento”. Concorda que percorrer o mundo é meio caminho andado para conhecermos os nossos próprios vícios e os problemas da nossa sociedade?
Eu acredito que a viagem é acima de tudo uma conquista de perspectiva. Serve para conhecer e compreender os outros, mas, mais ainda, para nos conhecermos e compreendermos a nós próprios. O rapper Broda V não sabia que vivia numa das cidades mais poluídas do mundo (Bangalore) até ter viajado para os Estados Unidos e ter respirado “o ar puro das ruas de Nova Iorque”.
Ficamos com a sensação de que, um pouco por toda a Ásia, há uma atitude conformista em relação à realidade política e social. Concorda que a tendência para o pacifismo e submissão dos povos asiáticos pode ser um obstáculo ao progresso de certos países orientais?
Foi uma das constantes que encontrei nos vários países asiáticos por onde passei: um certo amor pelos consensos, pela não-conflitualidade, por aquilo a que os chineses chamam, com um evidente pendor político e propagandístico, a Harmonia. É uma atitude vista como positiva, e como superior à alta conflitualidade que domina o Ocidente, mas que é inseparável de submissão à autoridade, do abdicar dos direitos individuais, da privacidade e da liberdade política. Mas não estou certo de que isso seja um obstáculo ao progresso. Em países como a China ou o Vietname, o autoritarismo político é visto como uma vantagem para o crescimento económico. E as pessoas são levadas a acreditar (com um certo êxito, reconheço) que poderão ser felizes se tiverem liberdade económica, se puderem enriquecer e divertir-se, mesmo que não tenham liberdades políticas. São as novas ditaduras alegres da Ásia.
Afirma que “sentir as cidades é tomar o pulso à utopia”. Será possível conhecer os sonhos e a mentalidade de uma população estrangeira sem viajar?
Talvez algumas pessoas consigam, mas eu seria incapaz de compreender fosse o que fosse do mundo se não viajasse. A viagem, para mim, é uma forma de investigação.
No geral, como é que a expectativa que tinha acerca dos sonhos, costumes ou estilos de vida da classe média asiática contrasta com o que encontrou na sua viagem?
Eu procurava sonhos colectivos, ideais, causas, aspirações, não apenas individuais, mas para a sociedade, para o mundo. Parti da premissa de que quando as pessoas saem do círculo da pobreza e da sobrevivência, é aí que começam a sonhar, a imaginar um futuro melhor. E a minha hipótese era de que talvez essas utopias fossem alternativas às que temos no Ocidente. E que, dessa forma, a Ásia fosse uma nova fonte de valores, de ideias, de visões. E encontrei de facto coisas novas e surpreendentes: uma forma diferente de encarar a tecnologia, uma valorização das relações humanas, novos modos de habitar as cidades, uma crença entusiasmada no futuro. Mas também uma falta de respeito pela cultura e tradições asiáticas, vistas como sinal de atraso, uma mentalidade novo-riquista da parte da nova classe média, uma tendência para cometer os mesmos erros que o Ocidente cometeu, quanto ao crescimento das cidades, a poluição, o consumismo.
Deu por concluída a busca de utopias ou acha que irá conseguir encontrá-las noutro continente?
Não dei por concluída a minha busca. Continuo muito interessado nas utopias e a achar que é na Ásia que elas vão surgir, ou estão a surgir. No entanto, como me fez notar Richard Oh, um escritor de Jacarta, o conceito de Utopia não é asiático, mas europeu. Venham de onde vierem, as utopias vão nascer em força nos próximos anos, e eu estarei muito atento.
Para terminar, peço um conselho de viajante para viajante: tem alguma dica para atravessar a estrada, com segurança, no meio do trânsito infernal de Saigão ou Bangalore?
Sim, o truque é atravessar, a passos certos e seguros, sem parar nem hesitar, não importa a intensidade do tráfego. Os veículos desviam-se, abrandam ou aceleram, com a precisão de um computador, de forma a deixar passar o peão, incólume.
1 Commentário
Excelente publicação.