Preocupada com o tecido emocional das pessoas e, em particular, com aqueles que se tornam invisíveis aos olhos da maioria, Patrícia Reis já fez chegar ao leitor mais de uma dezena de romances, novelas e contos, tanto individualmente como em projectos de co-autoria. Abordando temas difíceis como o abuso de menores, o abandono e a institucionalização de crianças ou a solidão e a morte, a escritora não esquece, porém, a esperança, a partilha e o afecto, especialmente quando salva os seus personagens com o poder da amizade.
Seguir a sua obra é reencontrar personagens, bandas sonoras e eternas questões existenciais, revisitando Caetano Veloso que, após “Amor em segunda mão” (Dom Quixote, 2006), surge agora em “Da meia-noite às seis” (Dom Quixote, 2021), livro que usa o vírus como moldura para expor anseios e receios. Tudo para mostrar que, o mais importante, será sempre a salvação e a superação. Fica a entrevista ao Deus Me Livro.
Analisando o elenco de problemas que compõem o puzzle de flagelos que são os seus romances, podemos afirmar que lhe interessa expor o tecido emocional dos invisíveis?
Não sei se será essa a motivação. Escrevo sobre pessoas e sobre temas que, por razões diversas, me interessam ou me perturbam. Creio que o tecido emocional das pessoas é um território vastíssimo e muito interessante. Diria que escrevo sobre pessoas e, nesse sentido, sobre aquelas que são menos visíveis, mas não menos importantes.
Apesar do trabalho de investigação afirma: “Não é um decalque da realidade, são sempre romances“. Importa separar a investigação da ficção, ou a ficção desempenha sempre o papel principal porque, a dado momento, “memória é imaginação“?
A ficção é o protagonista principal. A pesquisa que fiz, pesquisa com algum sentido jornalístico, foi para o livro As Crianças Invisíveis. Os restantes romances têm pouca pesquisa ou mesmo nenhuma. A imaginação é muito mais interessante de trabalhar do que a realidade, propõe outras fronteiras, outros abismos.
Considera que a maioria dos leitores se afasta dos livros que têm temas muito duros?
Eu sou uma leitora e não me afasto de temáticas mais duras, nunca o fiz. Ler é um exercício tão solitário e individual quanto a escrita. O leitor lê e interpreta à sua maneira, à sua medida. Podemos dizer que os livros mais “cor-de-rosa” têm sucesso, mas a Literatura também o tem e esta é sobre a Humanidade, logo sobre temas menos cor-de-rosa.
“61mil crianças institucionalizadas, é o estádio do Benfica a abarrotar de gente!“
São palavras suas numa entrevista à TSF, a propósito da publicação e do tema em questão em “As crianças invisíveis”, onde afirma também que, no seu processo de escrita, existe um processo de insegurança enorme. Até que, depois, o livro e as personagens assumem o comando, num processo difícil e sempre sem versões finais. Não existem versões finais porque os temas são duros e pegam na desafeição da sociedade em geral para assuntos que se querem invisíveis? Os romances e os contos devem ser incómodos ao ponto de não se permitirem sequer um final, já que o desenlace e a preocupação devem ficar a ressoar no leitor?
O que disse, em relação ao livro As Crianças Invisíveis, é que o final é aberto. A vida daquela criança, agora adulta, segue. Deixo ao leitor a possibilidade de imaginar o resto, como entender. Na verdade, creio que a maioria dos livros têm finais abertos. Isso não está obrigatoriamente relacionado com os temas, mas com a estrutura narrativa.
“Da Meia Noite às Seis” assume um tom algo visceral, tal como os tempos actuais. Importava salpicá-lo com vários acontecimentos incómodos para que fosse um retrato preciso do clima pandémico, ou estão todos lá por serem assuntos que lhe importam mais que outros?
Da Meia-Noite às Seis foi escrito durante o primeiro confinamento e reflecte os meus receios, as minhas interrogações. Não é um livro sobre a pandemia, tem o vírus como moldura. É um livro sobre a amizade, sobre o luto, sobre a possibilidade de resgatar alguma alegria. Dentro da narrativa existem factos reais, as datas das notícias sobre o vírus, por exemplo. Fazia sentido que assim fosse por uma das personagens, Rui Vieira, ser jornalista.
Tem uma vasta publicação, desde contos em colectâneas temáticas, novelas e romances ou livros em co-autoria. São tudo processos distintos ou acabam por se complementar? Na “Gramática do medo”, por exemplo, houve dificuldade em separar a produção da Patrícia e a da Maria Manuel, ou serviu para sublinhar ainda mais a intensidade de uma amizade onde uma é o avesso da outra e que colmata a angústia, a solidão, mas também a dependência e a banalidade dos dias?
No livro escrito a quatro mãos com Maria Manuel Viana, o processo foi o de uma simbiose. Diluímo-nos na escrita uma da outra e é de tal forma assim que tenho dificuldade em dizer quem escreveu o quê. É fácil de verificar, claro, mas com o livro na mão, admito, não me é evidente. Gosto muito da construção desse livro, da estrutura narrativa, das personagens, do ritmo. Reflecte um pouco o que somos as duas e, ao mesmo tempo, faz um brinde à nossa amizade. Todos os livros são únicos na sua execução, o meu processo nunca é o mesmo, nunca se repete. No caso do último livro, Da Meia-Noite às Seis, por exemplo, os diálogos estão encaixados dentro da narrativa. Nunca tinha escrito assim. Aconteceu desta maneira. Creio que há sempre uma evolução ou, se se quiser, apenas um processo diferenciado por ser uma história distinta, por as personagens exigirem outras coisas.
Escrever a dois aumenta o eco que diz precisar ter antes de entregar um livro à editora?
Escrever com a Maria Manuel Viana foi um processo muito fácil e confortável por sermos amigas e, ao mesmo tempo, combateu-se a solidão do processo de escrita individual. Ter alguém com quem partilhamos a história no imediato pode ser muito consolador.
Na colectânea “Uma Dor Tão Desigual”, que aborda a saúde mental explorando as inúmeras fronteiras e as dificuldades associadas à depressão, solidão, demência ou até ao estigma que é a procura de ajuda profissional, escreveu em A impossibilidade de ser livre: “Não sei como definir o bem, esse estado de bonomia apesar das agruras e penas duras da vida“. São palavras suas ou só as compôs para um personagem?
Todas as palavras são, num certo sentido, minhas, sou eu quem as escreve, quem as atribui a esta ou outra personagem. Os livros, não sendo autobiográficos, levam-nos lá dentro.
No outro oposto, o do mal e até o do requinte da maldade, disse numa entrevista à RR: “Nós estamos um bocadinho voyeuristas do mal” – com certeza um mal diferente daquele que expõe nos seus romances. Como pretende que se olhe para esses outros males, os que expõe nos seus livros?
Os males que exponho quando escrevo cabem dentro de uma história, servem um propósito. Já escrevi sobre abuso no seio da família, sobre violação, sobre crianças institucionalizadas, mas não tenho essas temáticas em mente quando começo a escrever. Acontecem no processo de escrita. Quando disse que somos muito voyeuristas referia-me à velocidade e invasão das redes sociais, da sua superficialidade e da velocidade de informação que circula, na sua maioria, informação negativa, com eventuais contornos de maldade.
Atingir o leitor é o seu maior objectivo, ou será antes explorar temas escondidos nos temas principais? Em “A Construção do Vazio”, por exemplo, temos violência física e psicológica. Foi propositado a violência física ser feita por um homem e a psicológica por uma mãe, ou interessava mais mostrar a forma como se cresce e se sobrevive e, daí, a transferência de personagens entre romances?
A Construção do Vazio é um livro sobre a criação de identidade – diria que este é um dos meus temas centrais – de uma personagem cuja infância e adolescência é marcada pelo abuso físico e psicológico. Interessava-me explorar a dimensão da família e da capacidade de marcar alguém para todo o sempre. Como é que construímos uma identidade a partir de uma cicatriz tão profunda? A mesma pergunta é válida para o livro As Crianças Invisíveis e talvez mesmo para o Da Meia-Noite às Seis. Acredito que escrevo histórias que possuem vários sub-histórias e que os temas vão surgindo conforme as personagens se desenvolvem.
Em “O que nos separa dos outros por causa de um copo de whisky”, há uma conversa fictícia com uma barmaid. Podemos esperar uma resposta com esta personagem a sair do lado de dentro do balcão e a ganhar voz, ou o monólogo surge apenas como metáfora para os tempos actuais em que o isolamento e a falta de amizade pautam tantas vidas?
Essa novela é claramente um mergulho na solidão e melancolia do personagem principal. Vivemos isolados, hoje muito mais do que há cem anos, porque a Internet dá-nos somente a ilusão da proximidade. Nesse sentido, a barmaid surge como uma metáfora.
“Acho que a rádio tem este poder imenso que é o encontro com a multidão só através da voz e isso é de uma intimidade incrível“. Esta citação pode, de alguma forma, ser uma metáfora para as redes sociais, se forem bem usadas? E que metáfora quis passar com esse encontro de vozes quando precisamente um dos personagens fica mudo? Alguma critica subtil ao jornalismo actual?
Esta citação está no último livro. A personagem do jornalista Rui Vieira é uma metáfora do mundo em que vivemos e do pouco que escutamos, é uma interpretação da necessidade de silêncio para melhor entender o outro. A crítica ao jornalismo não creio que seja subtil, é real. Algum jornalismo que se pratica hoje é tudo menos jornalismo. Há uma ética e um código deontológico que devemos acatar. Jornalismo não é a exploração da dor alheia. Este tema levar-nos-ia muito longe.
A frase “Memória é Imaginação” pode se encarada como uma forma de salvação?
A imaginação é salvadora. Pelo menos, é-o para mim. Carrego para dentro da imaginação e da memória o melhor e também o pior. E, através da escrita, faço uma purga e, nessa medida, salvo-me.
Foto: Mafalda Ramos
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