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Entrevista: Miguel D’Alte

Por Ana Ilhéu · Em 19/12/2022

“O Lento Esquecimento de Ser” (Trebaruna, 2022), romance de estreia do escritor Miguel D’Alte, pode ser apresentado de diversas formas. Desde logo, um romance sobre o amor e o seu poder redentor e compassivo, a expiação da culpa de uma vida ou um livro sobre a ditadura da escrita.

A escrita surge retratada como inseparável de sofrimento e de doses generosas de egoísmo e de excessos, como epicentro de vidas em turbilhão, fonte de sonho e de frustração. Henri Benoît, escritor polémico, em sofrimento e em luta consigo, em dívida com os outros, incapaz de se redimir no sucesso do que faz, reconhece nos outros as suas próprias cicatrizes.

“Os grandes livros, tal como as nossas vidas, têm grandes doses de sofrimento”. Miguel D’Alte transmite tudo isto de forma profunda e intensa, o que desperta uma curiosidade acrescida quando nos confrontamos com a sua juventude. Nascido no Porto, em 1990, já viveu na Républica Checa, França, Angola e Luxemburgo, perseguindo paixões como a literatura e a escrita – mas também o viajar, a história e o rock ‘n’ roll. Tirou dois cursos de escrita de ficção e elege como suas principais influências Charles Bukowski, João Tordo e Michel Houellebecq. Quisemos saber a que se deve a maturidade da sua narrativa.

“O Lento Esquecimento de Ser” convida-nos a conhecer a vida de um escritor polémico. Entre 1928 e 2001, a narrativa permite-nos acompanhar a forma como diversos acontecimentos sociais tiveram impacto na sua vida e na sua obra. Como foi escrever sobre quem escreve? Qual é a probabilidade de encontrarmos algo de Miguel D’Alte em Henri Benoît?

Os meus escritores preferidos são os que de alguma forma transportam uma aura obscura e mitológica sobre a literatura e o seu propósito, os que são obcecados pelos seus livros, polémicos, marginais, testemunhas de cada palavra que escrevem, provavelmente os que têm uma obra mais autobiográfica. Por isso, escrever sobre livros e romancistas como Henri Benoît, o protagonista deste romance, foi fácil, pois é um tema que me fascina e atrai. Henri Benoît é o típico escritor decadente: é alcoólico, obsessivo, vive recluso dos seus livros e do que os jornalistas escrevem sobre ele; procura redimir-se (deixemos os leitores descobrir porquê), por isso mesmo decide aceitar o cargo de professor na Sorbonne, em 1967, o que espoleta tudo o que acontece a seguir. Contudo, acompanhá-lo no seu percurso foi muitas vezes doloroso, é um anti-herói com dificuldade em tomar as decisões mais acertadas, carrega como uma cruz o que considero ser a inevitabilidade da nossa existência: o esquecimento. Talvez, também, por isso mesmo, haja de facto um lado autobiográfico nesta personagem. O tempo e as memórias que este gera são temas que me fascinam, a obsessão pelos livros, a noção de que a vida é frágil e os sonhos também.

Porquê situar parte dos acontecimentos centrais do enredo em Paris, com o Maio de 68 e as lutas pela diferença em termos de identidade e de expressão à espreita?

Passei muito tempo em Paris para a escrita deste livro, foi sempre óbvio para mim que seria esta o pano de fundo deste romance pelo tipo de história que queria contar. Paris é uma cidade especial para as artes, nomeadamente para a literatura. É uma cidade revolucionária, ligada a muitos acontecimentos sociais. Durante muito tempo, parecia que todos os artistas acabavam lá, Hemingway, F.S. Fitzgerald, Céline, Cortázar, Kundera, etc, e em muitos períodos diferentes da história. Eu queria que colocar Henri Benoît num ambiente assim. E num período conturbado, revolucionário, onde precisasse de tomar decisões, onde fosse confrontado com situações difíceis que também o moldassem. Ao mesmo tempo, considero que o período do Maio de 68 nunca foi devidamente explorado, seja em romances ou filmes, e que seria interessante por isso. Os temas do Maio de 68 são sempre actuais.

Quando, a determinada altura, é atribuído a Henri Benoît “um realismo sujo”, e o Miguel D’Alte elege como suas principais influências Bukowski e Houellebecq, até que ponto podemos esperar do personagem um retrato dos mesmos, ainda que ficcionado?

A personagem de Henri Benoît é muito influenciada por esses escritores ou pelas personagens que estes criaram, como o alter ego do Bukowski, Hank Chinaski, ou as várias personagens dos romances de Michel Houellebecq, homens desiludidos pela vida, com vícios – de novo a palavra “anti-heróis”. Além desses autores, creio que também há a influência do L.F. Céline, por exemplo, nas relações que o escritor francês tinha com Gallimard na década de 50. Céline reclamava da percentagem de direitos de autor, enviava-lhe cartas azedas com exigências. No fundo, Henri Benoît vem da minha experiência como leitor, do que me marcou nesses livros, da vida dos escritores que admiro.

Como se definiria como escritor? Que papel tem a escrita na sua vida? O que é importante para si quando escreve?

É difícil definir-me como escritor. Prefiro que sejam os livros a fazê-lo através de uma voz própria que espero que se desenvolva com o tempo. Porém, sem dúvida que os escritores que admiro têm uma influência na maneira de escrever ou de ver este ofício – por exemplo, partilho muito das ideias do João Tordo sobre a disciplina que a escrita requer, o trabalho que é preciso fazer. Essa maneira de ver o processo de criação de um livro está também espelhada no meu romance, quando Henri Benoît diz aos alunos, nas suas aulas na Sorbonne, no ano lectivo de 1967/1968, que devem primeiro viver para terem algo sobre o que escrever, a disciplina de escrever regularmente para conseguir chegar ao fim dos livros e não esperar sentados por uma epifania de inspiração. E ler muito. É também isso que eu faço.

O que espera dos leitores e o que pode o público esperar de si, num futuro próximo, como escritor?

A recepção dos leitores ao livro e à história de Henri Benoît tem sido muito boa. Fico-lhes muito agradecido. Sobre o meu futuro como escritor, encontro-me a trabalhar num segundo livro, que estará brevemente concluído. É diferente deste, estará mais próximo do thriller. A personagem principal será também um anti-herói, um homem que perdeu coisas e que as tentará encontrar através de uma investigação.

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Ana Ilhéu

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