Por vezes, as histórias de que somos feitos, entre memórias e sentimentos, enredam-nos numa teia complexa de amor e culpa. Assim acontece em “Cadente” (ler crítica), o primeiro romance de Mário Rufino (1975-), em cujos protagonistas – uma senhora idosa que enfrenta a progressão implacável da doença de Alzheimer e o seu neto, que tenta cuidar dela como pode antes de a internar num lar – reconhecemos dois seres humanos cheios de contradições e defeitos.
O autor licenciou-se em Língua e Cultura Portuguesa, na Faculdade de Letras de Lisboa, realizou uma pós-graduação em Ensino de Português Língua Estrangeira/Segunda na Universidade Nova e é hoje professor de português como língua estrangeira. Dedica-se também à crítica literária no website Livrómano, e participou na organização de festivais literários.
Nesta entrevista, Mário Rufino deixa bem claro o seu gosto imenso por festivais literários, depois de partilhar experiências de vida difíceis que tiveram um impacto enorme na escrita deste livro – uma obra que, tal como o autor, defende o poder salvífico das palavras, contra a morte e o esquecimento.
Em “Cadente”, caracteriza as palavras como “potentes máquinas do tempo na manutenção da imortalidade”. Diria que a escrita é, para si, uma resposta ao desafio da morte?
A escrita é uma forma de limitarmos os efeitos da morte. Continuamos a conversar com os mortos, através dos livros. Pessoas de quem só sabemos o nome continuam a ensinar-nos a viver, continuam a fazer-nos companhia. O livro prolonga-nos para lá do tempo e do corpo. No caso do “Cadente”, a palavra escrita foi o melhor que encontrei para desenrolar o novelo, confuso e cheio de nós, que estava a formar-se dentro de mim. A palavra serviu para espelhar o que se passava. Depois de escrita, observei-a para me reconhecer. A mim e às outras pessoas que sobreviviam a este problema. A palavra salva, a literatura salva. Através das histórias, resgato do esquecimento pessoas que já não existem fisicamente. Ouvi muitas histórias na sala de visitas do lar onde a minha avó está. Enquanto eu tentava entender a minha avó, resgatá-la do oblívio, uma senhora sentava-se ao pé de mim com urgência em ser salva. Contava-me a sua vida e explicava-me o que se passava na sala. Ali, no meio de tanto fim, vi beleza. E percebi que as palavras não conseguiriam captar tudo, seja pela falência da linguagem ou pela minha incapacidade de registar aquela luz. Não quero esquecer aquela gente, e quero que os leitores as conheçam. Também por isso, escrevi. O livro é ficcionado, mas há histórias que foram resgatadas desse esquecimento. Ficaram como as ouvi.
Como ocorreu a transição da escrita sobre livros para a escrita do seu primeiro romance? Quais as influências que gostaria de destacar?
O registo é muito diferente. A escrita de crítica literária obedece mais a critérios objectivos, vindos da crítica literária (ferramentas) e da teoria da literatura (fundamentos). É também subjectiva, claro. O leitor leva para a leitura toda a sua experiência de vida assim como as leituras anteriores. Em boa verdade, as leituras fazem parte da experiência de vida. A isto chama Jauss de “Teoria da Recepção”. “Cadente” é um romance e, como tal, tem uma estrutura mais elástica e aberta. Além disso, tem uma narração emotiva, uma voz de quem está dentro do problema e que não tem o afastamento emocional. Foi um desafio, pois queria expressar isto sem cair num tom meloso. O narrador não é um homem literato; não vai buscar companhia à literatura, o que o deixa ainda mais desamparado. Dito de outra forma, as influências estão implícitas. Aprende-se a escrever lendo; aprende-se a perceber os escritores e as suas ferramentas também falando com eles, entrevistando-os. Tenho sido um privilegiado, pois tenho tido acesso tanto a livros como a escritores. São a minha escola. Tentei afastar a meta-literatura. Não me pus aos ombros de outros autores para me fazer mais alto. É uma tendência compreensível e que se vê muito em primeiros romances. Não era esse o caminho, não me fazia sentido. É um homem que lê pouco e que precisa de se compreender. Um homem que vemos todos os dias nos transportes públicos a tentar sobreviver um dia de cada vez.
A narrativa é protagonizada por uma idosa com doença de Alzheimer e o seu neto, ambos dotados de imperfeições muito humanas. Como se processou o desenvolvimento destas personagens? Até que ponto as suas histórias são inspiradas em realidades?
Nunca pensei em escrever sobre a doença de Alzheimer. Não fazia parte dos meus planos. Quando estava a escrever o que não viria a ser o meu primeiro romance, a minha avó teve de ir para um lar por perda de autonomia, devido à doença de Alzheimer. De repente, tudo deixou de ser abstracto e passou a ser real. Eu tinha muito medo de a ir visitar. Muito medo e muita ansiedade. Não sabia se se lembrava de mim, não sabia como me comportar, nem sabia o que iria encontrar. O esforço que a minha avó fazia para me contar as minhas histórias com ela era comovente. Percebi que assim que ela não conseguisse, eu morreria também, pedaço a pedaço. Quando saí da primeira visita, lembrei-me das palavras do Afonso Cruz que estão em epígrafe. Somos feitos de histórias. A partir daí, tive necessidade de entender o que se estava a passar com a minha avó, tive necessidade de entender a agonia da minha família por ter de tomar decisões muito difíceis, e tive de me compreender também. A primeira pessoa que vi morrer nos olhos da minha avó fui eu. Não estava à espera de ver tanta beleza, como disse anteriormente. Conheci pessoas maravilhosas, histórias emocionantes e gestos de familiares e cuidadores que guardo com tudo o que tenho a defendê-las. Para tudo isto, optei por uma estrutura e registo ficcional.
A que se deve a opção de colocar a idosa entre os que se viram no lado errado da História depois do 25 de Abril de 1974?
Aproveito parte da pergunta anterior para responder a esta. Seria muito fácil pô-la no “lado certo” da História. Era um atalho para ganhar a simpatia do leitor. Mas a beleza do ser humano está na sua complexidade. São dois seres complexos, cheios de contradições e defeitos. Somos nós.
Uma outra razão de ela estar no “lado errado” da História é que mais importante do que a lógica das ideias é a inclinação para o bem. Certo, não se pode dissociar uma coisa da outra, mas em contradição, por qual optamos? A avó ensina ao neto qual é o caminho, ela ensina pelo exemplo quem não quer ouvir. Aqui, aproximei-me muito da minha avó. O que esta mulher tem de melhor é da minha avó. Eu não poderia plasmar a minha avó em palavras. Seria uma carta de amor, sem defeitos nem contradições. E ninguém é assim. Um ser humano é um “bicho” extraordinário. É difícil, é complexo, capaz do melhor e do pior e, por isso, entusiasmante de conhecer e compreender. Anda perdido em si mesmo, tantas vezes, e é nos atos de gentileza, de bondade que revela o seu âmago. Quero acreditar nisso.
A degradação que o envelhecimento pode implicar é algo que receia? Se pudesse escolher entre o mergulho no esquecimento absoluto e a alternância deste com momentos de lucidez, como aqueles que a protagonista tem, nos quais se apercebe de que algo de errado se passa, o que preferiria e porquê?
Talvez seja a pergunta mais difícil que me fizeram nas entrevistas. Receio o envelhecimento, sim, quando penso na perda de autonomia, na solidão e na dor. Tenho medo de ver o meu filho partir primeiro do que eu. Aquela senhora que me contava histórias… nunca a vi com uma visita. Ela aproveitava as sobras dos outros. A incapacidade de amar e de ser amado assusta-me. Por isso, quero acreditar que escolheria a alternância com momentos de lucidez. Sem memória não temos quem amamos connosco. Ficamos vazios e perdemos o que nos torna seres sociais, capazes de ter um espectro de sentimentos de norte a sul. Quero acreditar nisso, mas o mergulho no esquecimento é sedutor.
À medida que o passado se desvanece na sua memória, a idosa procura reconstruí-lo, ora idealizando o filho e apagando o neto, ora preenchendo hiatos com narrativas que lê. Não haverá em muitos de nós, mesmo sem Alzheimer, a tendência para construir uma perspectiva alterada do passado? Até que ponto poderá a auto-ficção ser útil para enfrentar o presente e o futuro?
A minha avó contava-me sempre as mesmas histórias quando me via nas visitas. Agora já não conta. Desde Dezembro de 2023 que não se lembra de mim. Nessas histórias havia pequenas variações, pequenas recriações de visita para visita. Houve um dia em que mudou a história de forma a alterar o rumo dos acontecimentos. Se eu não soubesse os factos, eu não me teria interrogado. Tudo fazia sentido. Fiquei a pensar nisso. Percebi que a minha avó me contava como queria que tivesse acontecido. E percebi que aquela versão era mais verdadeira para o que ela sentia do que a factual. Eu acreditei nela. Eu sabia que aquela versão era o espelho dos sentimentos dela. Por isso, aquela era a versão verdadeira. A realidade não é antagónica da ficção. Elas dependem uma da outra, são simbióticas. Nós reinventamo-nos constantemente. Não é viver numa mentira, nada disso. Preenchemos os espaços vazios com histórias, com sentimentos, com esperança. Eu e os meus amigos contamos todos os verões as mesmas histórias que passamos desde há 40 anos para cá. Têm pequenas variações entre elas. São falsas? Não. Reflectem a experiência de vida de cada um. Não lhe chamaria autoficção. Levamos para as histórias os nossos sentimentos e experiências. E recriamos. Somos fruto dessas histórias e do que sentimos nela e com elas. Ligam-nos ao passado; sem passado não compreendemos quem somos no presente. Há uma outra situação: Ao ouvirmos uma pessoa com a doença de Alzheimer percebemos que a factualidade não é um bem absoluto e dogmático. Devo dizer que um familiar próximo morreu? Devo dizer que ela já não volta a casa? Doía-me muito quando a minha avó me convidava para almoçar em casa dela, como fazíamos aos domingos. Pensava sempre nas vezes em que eu dizia que naquele domingo não podia. Deveria dizer que ela já não sairia dali? Para quê? Na minha cabeça continuamos a almoçar aos domingos, continuo a ouvir que ela vai fazer empadão para o meu filho, porque ele gosta muito; para mim a minha avó continua a cheirar a arroz-doce.
Já tem algum novo projecto literário? Em caso afirmativo, o que pode adiantar-nos acerca dele?
Estou a continuar a escrever o que estava antes do “Cadente”. Estou na cabeça das pessoas, lugar por vezes mal frequentado, mas onde me sinto espantado e com necessidade de compreender. E de me compreender.
Gostaria de partilhar algo sobre os festivais literários?
Eu gosto muito de festivais literários. Gosto do ambiente, dos escritores e da organização. As Correntes d`Escritas foram o primeiro festival a que assisti, trabalhei e onde estive como convidado. Sou muito feliz na Póvoa de Varzim. Estive na organização do Festival Literário da Madeira e no Escritaria- Festival Literário de Penafiel. Foram experiências incríveis e compatíveis com a minha forma de ser. Eu gosto de estar nos bastidores. A minha imagem é o meu trabalho. Não sou pessoa para aparecer, estar no centro das atenções; não preciso, não quero e é contranatura. Tenho aprendido, aos poucos, a estar deste lado, no lado dos convidados e entrevistados. Ainda me sinto um peixe fora de água. Tudo é muito estranho: dar entrevistas, tirar fotografias, aparecer nos jornais, na televisão… Isto está guardado para os escritores. E a palavra escritor é uma palavra muito grande para mim. Penso que mereço ser chamado de crítico literário (são muitas críticas, estudo e anos a escrever), mereço ser chamado de professor (sou há 19 anos), mas para escritor ainda me falta muito. Tenho tanto para aprender. No LeV- Literatura em Viagem, em Matosinhos, estava a falar na mesa de debate e a ver na plateia uma escritora extraordinária, como Dulce Maria Cardoso, e dei por mim a pensar “Deus, isto está tudo trocado.” Dito isto, os festivais literários proporcionam um contato direto entre autor e leitor. São muito preciosos. Passa a haver um rosto e uma voz no leitor ou leitora. Disso gosto muito. Conversar com essas pessoas compensa tudo e faz-me ultrapassar esta irritante e limitadora timidez. Felizmente, o tempo de o escritor estar numa torre de marfim acabou.
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