Edgar Allan Poe. Stephen King. Julio Cortázar. Não faltam referências literárias alheias quando se ouve falar da prosa de Mariana Enriquez, mas a verdade é que a escritora argentina tem construído um universo literário muito próprio: um lugar por onde se passeiam fantasmas, dotado de uma consciência de classe sem qualquer desejo de moral, acompanhado por uma banda-sonora para a adolescência com muito de grotesco, macabro e insano. “As coisas que perdemos no fogo”, o seu primeiro livro publicado em Portugal pela Quetzal, reúne mais de uma dezena de contos com assinatura e bons augúrios. O Deus Me Livro aproveitou a passagem de Mariana Enriquez por Portugal para disparar algumas questões.
Começou pelo romance e só em 2005 escreveu o seu primeiro conto. Um pouco o caminho inverso percorrido pela maior parte dos escritores. Em qual dos mundos se sente mais confortável?
Sinto-me confortável em ambos os mundos, mas os contos acabam por surgir de forma mais espontânea – algo que varia de escritor para escritor, apesar de normalmente se considerar o conto uma forma mais complexa. A verdade é que a escolha de escrever contos foi influenciada por dois factores: o meu trabalho como jornalista e o de ter pouco tempo. Dessa forma o conto adequava-se melhor à minha forma de vida, e além disso as histórias que tinha para contar eram muitas e breves, não necessitando de serem transformadas em novela. Estavam mais relacionadas com ideias muito intensas do que, propriamente, com personagens. De momento estou a escrever uma novela e trata-se de um trabalho completamente diferente. Mas consigo desfrutar, de forma diferente, dos dois mundos.
Em todos os contos de “As coisas que perdemos no fogo” há um interesse recorrente pelas histórias de fantasmas, bem como uma quase devoção ao gótico. Como chegou a esta escrita feita de estranhos e inexplicáveis eventos?
Gosto de histórias de fantasmas, e sempre li literatura de terror e fantástica – de Cortázar até Stephen King, Shirley Jackson, Henry James – ou a escritora argentina argentina Silvina Ocampo. Também gosto de Emily Bronte, do fantástico inglês e do gótico sulista americano. O interesse surge das minhas leituras e de um interesse pessoal no tema, comum a muita gente: muitos desfrutamos do terror ainda que, na literatura, este não seja um género “respeitável” – isto apesar de escritores tão importantes e essenciais como Charles Dickens, William Faulkner ou Poe terem escrito contos de terror.
A Argentina de hoje ainda é um país onde as superstições e as lendas vivem lado a lado com a violência e o horror?
Não. A Argentina é um país pouco supersticioso, especialmente no contexto da América Latina. Mas a escrita é sempre um ponto de vista, neste caso o meu. E como a superstição popular é um tema que me interessa vou à sua procura e trago-a para dentro dos meus contos. A diferença em relação a outras literaturas (o vampiro é parte da superstição nos Balcãs e entrou na literatura com o Drácula, por exemplo, ou as ghost stories de MR James foram alimentadas por relatos populares) foi a de que a literatura argentina raramente usou as superstições populares que, mesmo não sendo massivas, existem, especialmente no norte do país. Quis assim recorrer a algumas delas para criar um clima inquietante. Porém, no geral, a violência social passa por lugares completamente distintos, que nada têm a ver com a superstição mas antes com o crime e a desigualdade social.
Há, em muitos dos contos, referências políticas que nos chegam quase de forma subliminar, mas que ainda assim estão lá. Como olha para o passado recente e o presente político da Argentina?
Interessa-me a política e quero que apareça nos meus contos. A Argentina é um país muito politizado, possivelmente pelas sequelas deixadas pela ditadura e as persistentes crises económicas. Os meus contos, ainda que tenham elementos fantásticos e de terror, estão firmemente assentes no realismo e, em particular, na realidade e na história social e política argentina. Escrevo sobre a crise de finais dos anos 80, uma crise económica brutal que me tocou quando era ainda adolescente; sobre os problemas sociais da cidade e de um país que tem uma grande quantidade de pessoas a viver na pobreza e na marginalidade; ou sobre as sequelas, políticas e psicológicas, da ditadura argentina, que foi muito particular. A figura dos desaparecidos é muito fantasmagórica e, ao mesmo tempo, a ditadura encontra-se muito presente no trabalho dos organismos de direitos humanos, na quantidade de antigos campos de concentração que são agora centros culturais para servirem de exemplo, na inclusão dos filhos dos desaparecidos que também foram sequestrados e que agora, já homens e mulheres nos seus quarenta anos, recuperam a sua identidade. Nos meus contos não é casual que tantas personagens desapareçam: não penso nisso de forma consciente enquanto escrevo, mas é um elemento de horror porque claramente tem origem num trauma social que não está ainda resolvido.
Neste livro sobressaem temas de certa forma fracturantes, como a homossexualidade, a violência doméstica, o bullying ou as deformações físicas, tudo muito bem embrulhado em papel negro. Considera-se uma escritora de causas?
Não, mas julgo que um escritor contemporâneo, se decide trabalhar com temas realistas, tem que ter uma espécie de antena sintonizada com as questões quotidianas que o rodeiam. Além disso, na nossa sociedade, a violência doméstica e o bullying sucedem-se com muita frequência, e não devem nunca ser silenciados. A homossexualidade parece-me totalmente normal, nunca pensei nela como uma questão fracturante.
A sua Buenos Aires é quase uma personagem, uma cidade na maior parte das vezes retratada como um lugar feio e desigual. É para si um lugar de desencanto ou, pelo contrário, essa atmosfera reflecte um ideal para a escrita literária?
É um lugar ideal para a literatura. Tem uma grande tradição, desde Borges a Sabato, Cortázar, Marechal ou Puig: na literatura argentina e em certas músicas, como nas letras de alguns tangos, foi sempre uma personagem. É uma cidade de contrastes, muito bonita, desigual e enorme. Eu escolhi mostrar o seu lado mais obscuro porque é adequado aos meus contos, e também porque quero alhear-me da Buenos Aires turística.
Outro dos temas dominantes nestes contos são os rituais de iniciação. Foi algo que marcou a sua adolescência?
Sim. É um tema que me fascina muito: o caminho da adolescência até à idade adulta, especialmente o das mulheres, das jovens. É um momento intenso, por vezes brutal, de grande vulnerabilidade e de muito poder. Ideal para a ficção.
Quais os livros que atravessaram a sua infância e adolescência e deixaram marcas?
“Wuthering Heights” de Emily Bronte, quase tudo de Stephen King, os contos de Cortázar, William Faulkner (custava-me lê-lo mas fascinava-me), a poesia (Rimbaud, Baudelaire, TS Eliot), Truman Capote, Carson McCullers, Ray Bradbury, JG Ballard. E muitos mais, mas este será o meu cânone da adolescência.
Ainda se lembra do primeiro filme de terror a que assistiu?
“Nightmare on Elm Street”, com um tal de Freddy Krueger. Mas o meu favorito é “O Exorcista”.
Costuma ser visitada por pesadelos ou dorme de forma tranquila?
Tenho pesadelos recorrentes, mas nunca os uso nos meus contos por serem repetitivos e não funcionarem como relatos. Mas também tenho noites em que durmo tranquilamente.
Que disco – ou discos – escolheria para servirem de banda sonora a este “As coisas que perdemos no fogo”?
Cada conto tem a sua música distinta, e mais do que em discos penso em artistas: ouço música enquanto escreve, e neste livro acompanharam-me Led Zeppelin, Josephine Baker, argentinos como Spinetta ou Gabo Ferro, Cat Power, sempre o Nick Cave, Ramones, algum folclore argentino e artistas mais recentes, como Lana del Rey, Mirel Wagner ou Sharon Van Etten.
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