Nascido em 1982, Manuel Abrantes formou-se em Estudos Europeus e Sociologia, tendo-se doutorado pela Universidade de Lisboa e elegido como área de investigação a sociologia do trabalho e das desigualdades, em particular no que diz respeito ao serviço doméstico. O seu primeiro romance, intitulado “Na Terra dos Outros” (ler crítica), que motivou esta entrevista, resulta do cruzamento entre a sua intuição e alguns testemunhos de mulheres a quem hoje chamamos empregadas domésticas, mas que durante muito tempo eram classificadas como criadas de servir. Através de uma narrativa realista e empática, acompanhamos décadas na história da sua protagonista, Maria do Carmo, cujo percurso é, ao mesmo tempo, uma odisseia pessoal e uma representação daquilo que terá sido o estilo de vida de um grupo de mulheres raramente escutadas e compreendidas.
Sendo investigador no campo da sociologia do trabalho e das desigualdades – com especial incidência no serviço doméstico –, até que ponto os casos que encontrou em contexto académico influenciaram a construção do percurso biográfico da protagonista de “Na Terra dos Outros”?
O percurso da Maria de Carmo – e todo o romance – foi uma criação guiada pela intuição e tomou direcções imprevistas à medida que eu escrevia, mas alguns testemunhos que eu tinha recolhido na minha investigação foram sem dúvida aparecendo e influindo no que imaginava. Por exemplo, a experiência de ir servir muito nova, certos pormenores dessa experiência; ou as relações com as patroas; ou, mais tarde, a partida para o estrangeiro… São coisas que dificilmente eu teria escrito se não tivesse ouvido relatos parecidos.
Como se desenvolveu o seu interesse por essa área de investigação?
Estava a fazer o mestrado na Holanda e entrevistei pessoas que trabalhavam no serviço doméstico. Comecei a questionar-me sobre esse trabalho, sobre as vivências de quem o faz… Li muito sobre o assunto e resolvi fazer mais entrevistas, conhecer mais pessoas.
O que motivou a sua estreia na ficção literária?
Escrevo desde muito jovem e publiquei contos em várias colectâneas, o primeiro foi aos dezoito anos, num concurso de Jovens Criadores, do Clube Português de Artes e Ideias. Escrevi sempre, o que se passou de diferente com este romance é que trabalhei nele vários anos e houve uma editora, a Companhia das Letras, que se propôs publicá-lo.
Não podemos deixar de reparar em algumas escolhas interessantes de nomes para personagens: conhecemos sempre um só apelido a Maria do Carmo, mas os patrões ricos têm dois (Lemos de Almeida); a primeira patroa, pouco paciente e muito desconfiada, que a instrui à base de bofetadas, chama-se ironicamente Benedita; a família seguinte de patrões, que oferece a Carmo uma nova vida, tem o apelido Nascimento… Foram escolhas espontâneas ou ponderadas com o objectivo de veicular estas impressões?
Foram espontâneas… Mas é interessante que notem esses sentidos, talvez o meu subconsciente seja responsável por isso. A dada altura, quando estava a escrever o capítulo em que acontece o 25 de Abril, apercebi-me de que a protagonista tinha o mesmo nome que o histórico largo da revolução… Ainda pensei procurar outro nome, mas concluí: se foi uma surpresa para mim, deixa estar, pode ser uma surpresa também para quem lê. E para a própria Maria do Carmo.
A protagonista ouve, a dada altura, uma colega afirmar que existe uma diferença entre ser criada ou empregada. Em que consiste realmente essa diferença, e quais as suas consequências?
Para a empregada que o diz, o termo “criada” está associado a servidão, a uma condição de menoridade, de obediência sem limites, enquanto o termo “empregada” é próprio de uma relação laboral, com direitos e deveres como nas outras profissões. Essa comparação entre a “criada” de antigamente e a “empregada” da actualidade volta a ser mencionada mais adiante, a Maria do Carmo nunca a vai esquecer, é importante para o modo como ela encara o seu trabalho.
Após o casamento, Carmo parece tornar-se um exemplo paradigmático de uma mulher que sofre com uma dupla jornada: não arranja tempo para si própria porque, quando volta do trabalho para casa, sente-se obrigada a continuar a trabalhar para a família, enquanto marido e filhos descansam. Como avalia a evolução da condição feminina a este nível, e que prognósticos faz a esse respeito?
Os estudos têm mostrado que as mulheres continuam a trabalhar mais que os homens: dedicam cada vez mais tempo a atividades profissionais (quase tanto como os homens, hoje em dia) e continuam incumbidas de mais tarefas domésticas e familiares. O desequilíbrio já foi bastante maior, é certo, mas ainda estamos longe da igualdade e nada nos garante que não teremos retrocessos no futuro.
Conhece casos de homens a trabalhar como empregados domésticos? Em caso afirmativo, quais as diferenças mais comuns entre a sua situação e a das mulheres?
Em Portugal, não conheço: é um emprego desempenhado quase inteiramente por mulheres, o que só por si dá que pensar, é perturbador, nos tempos que correm… Na Holanda ou no Reino Unido, as mulheres são a maioria, mas também há homens, geralmente em tarefas de limpeza – menos em tarefas de cuidado. E noutras regiões do mundo há panoramas bastante diferentes.
Face às vicissitudes da vida, Carmo chega a arrepender-se dos seus raros protestos e das poucas decisões que toma. Caso se cruzasse com ela na vida real e tivesse a oportunidade, que conselho lhe daria? O que mais gostaria de lhe dizer?
Há momentos em que ela se arrepende, mas também há momentos em que se orgulha. Nem sempre sofre, também se alegra, também vence… vitórias pequenas, talvez, mas importantes. Eu não teria conselhos para lhe dar. Penso que só lhe faria perguntas. Ainda há coisas dela que eu gostaria de conhecer melhor.
Tenciona escrever mais romances? Em caso afirmativo, já tem algum projecto acerca do qual possa adiantar-nos algo?
Estou sempre a escrever. Mas nunca falo do que estou a escrever. Portanto, a seu tempo, espero que voltemos a falar.
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