“Como é que nós, seres emocionalmente frágeis, sobrevivemos aos traumas e às violências que tantas vezes experienciamos nos pesadelos?”. É com esta e outras interrogações que Mafalda Santos nos confronta em “Aquilo que o Sono Esconde” (Suma de Letras, 2025 – ler crítica), um thriller surrealista que só poderia ter sido escrito por alguém que assume o fascínio pela temática do sono e pelos enigmas do cérebro humano.
Nesta entrevista, além de indagarmos acerca do desenvolvimento desta obra – original e assombrosa na exploração das dimensões ocultas da existência –, descobrimos a personagem de ficção que a autora preferiria ser, os seus sonhos realizados e ainda por realizar e o que podemos esperar do próximo livro.

“Aquilo que o Sono Esconde” é deveras original, mesmo no domínio da ficção fantástica ou especulativa. Como surgiu a ideia que esteve na base da obra, e como foi que esta se desenvolveu?
Tudo começou com a história que uma amiga advogada me contou, acerca de uma cliente sua que, após ter tido um acidente de carro que a deixou tetraplégica, viu a seguradora empreender contra si uma campanha de terror, na qual tentaram por todos os meios que a indeminização a que tinha direito não fosse paga. Este caso deixou-me a pensar. Que tipo de pessoa conseguiria deitar a cabeça na almofada e dormir, sabendo que o seu trabalho é levar a cabo uma batalha desonesta contra alguém que perdeu tudo? Quem poderia ter tão pouca empatia com o seu semelhante? Quem seria capaz de bloquear todos os sentimentos e olhar para uma pessoa tão vulnerável como se não passasse de um número? Desta reflexão surgiu o sono. Porque sempre foi uma temática que me fascinou: como é que nós, seres emocionalmente frágeis, sobrevivemos aos traumas e às violências que tantas vezes experienciamos nos pesadelos? Porque é que os efeitos desse impacto e angústia não nos acompanha depois durante o dia? Porque a verdade é que não o faz. Acordamos e seja o que for que a nossa mente tenha suportado durante o sono, aí estamos nós ilesos e prontos para outra.
O livro refere certas mitologias acerca do sono e dos sonhos. O que poderemos supor que a abundância de mitologias a esse respeito diz acerca da Humanidade?
Somos criaturas curiosas, tudo aquilo que não controlamos e cujo funcionamento não compreendemos, tende a prender a nossa atenção. A ciência evoluiu muito, mas a verdade é que o fenómeno do sono e de tudo o que ele abrange continua a ser um mistério. Diria mesmo que temos actualmente mais informação acerca do que se passa no espaço sideral do que dentro do nosso próprio cérebro. E isso é um enigma com contornos irresistíveis. Desde os primórdios da civilização que escritores, poetas, pintores, dramaturgos, realizadores, psicanalistas, teólogos, sentem essa atracção e ímpeto de tentar explicar o sono. O que diz de nós enquanto Humanidade? Que somos obcecados com a nossa própria complexidade? Que somos mais facilmente seduzidos pela vertigem de um precipício onírico do que pela realidade? Não dizer com certeza, mas como escritora só tenho a agradecer.
A certa altura, Jaime, o protagonista, intui que a mãe é “o elo invisível, a conexão entre o caos, a génese de todos os caminhos, de todas as explicações”. Parece haver algo de freudiano nisto. Tendo Freud escrito sobre a interpretação dos sonhos, e sendo tanto ele como o seu discípulo Jung mencionados pela personagem do psiquiatra, diria que o trabalho destes investigadores foi uma fonte de inspiração adicional?
Sem dúvida. Freud dá uma pedrada no charco ao inaugurar esta forma de compreender os sonhos, olhando-os, pela primeira vez na História, como manifestações do inconsciente e como portas de entrada para desejos reprimidos e traumas recalcados. Jung, por sua vez, agarrou nessa descoberta e aprofundou a noção de inconsciente colectivo, dando aos sonhos uma dimensão simbólica e quase mitológica. Para escrever “Aquilo que o Sono Esconde”, o estudo destas teorias revelou-se essencial. Elas serviram não só como alicerces conceptuais para o enredo, como também para enriquecer a caracterização das personagens e os próprios ambientes onde a alucinação ganha espaço.

Jaime é um homem muito pouco simpático durante grande parte da narrativa. Quão catártico foi transformar num pesadelo a vida de alguém assim?
Tenho muito pouca paciência para heróis na Literatura. Agradam-me muito mais as personagens com defeitos, repletas de contradições e carácter duvidoso, talvez porque me pareçam mais humanas e porque representam um maior desafio para mim como escritora. Na construção do Jaime, decidi levar isto mais longe do que alguma vez tinha feito noutro livro. Ele é, de facto, um homem detestável, abjecto na forma como se relaciona com os outros e na forma como vê o mundo. Queria partir daí para encetar com o leitor um braço de ferro dialéctico, ou jogo de manipulação, no qual vou moldando os sentimentos de quem lê, levando a que os mesmos que ao início, e com razão, desprezam este protagonista, no final torçam por ele, num misto de pena e identificação.
Perto do início da história, Jaime sente-se bem quando coloca uma máscara. Mais adiante, afirma: “Vivi toda a vida com uma sensação de estranheza, de ser um personagem numa ficção criada por alguém”. Qual a importância, para si, da exploração da dicotomia entre o constrangimento das máscaras invisíveis do quotidiano e a libertação que a colocação de uma máscara pode proporcionar?
Essa dicotomia é riquíssima e cheia de nuances. Por um lado, temos as máscaras invisíveis que usamos no quotidiano por convenções sociais e expectativas que moldam, e muitas vezes limitam, quem mostramos ser; por outro lado, quando escolhemos conscientemente colocar uma máscara, seja no teatro, na arte, numa festa, ou mesmo num sonho, abrimos dimensão para a expressão daquilo que está oculto ou ainda por descobrir. É altamente curioso e paradoxal como, ao escondermos a cara, alcançamos um sentido de liberdade que nos permite mostrar um lado mais verdadeiro. Sobre isto Jung, por exemplo, escreveu sobre a persona, a máscara social que usamos para interagir com o mundo, mas também sobre a sombra, aquilo que deixamos fora da luz e que só pode emergir quando nos permitimos a esse jogo simbólico de ocultar para revelar. No universo do sono, onde as regras da lógica e da identidade se dissolvem, essa tensão ganha ainda mais força.
Se fosse uma personagem numa ficção escrita por outrem, qual preferiria ser e porquê?
Nunca me tinham feito esta pergunta e tive de pensar um bocado, mas depois a resposta surgiu com uma grande clarividência. Gostaria de ser Orlando, de Virginia Woolf. Porque Orlando não está preso, nem à cronologia nem às regras da realidade. É, ao mesmo tempo, uma crítica e uma celebração da História. Ele vive mais de 300 anos sem envelhecer, e essa travessia do tempo, impossível e mágica, permite-lhe testemunhar e viver diferentes épocas culturais, políticas e estéticas. É uma espécie de ponte viva entre mundos, como se a própria literatura fosse o seu corpo e o seu tempo. Orlando rompe todas as regras e convenções: do tempo, da biografia, do género e da identidade. É uma personagem-labirinto, espelho da mente livre e inconformada da sua autora.
A personagem da mulher que ficou tetraplégica, Irene, usa a escrita de um livro como instrumento para revelar a Jaime a sua verdadeira natureza. Como avalia o poder da literatura para a auto-descoberta – ou para a descoberta dos outros?
A literatura tem esse poder único, muitas vezes velado, de nos oferecer espelhos, que reflectem características ocultas de nós próprios, e janelas que nos permitem aceder a realidades e sensibilidades diferentes das nossas. Ao habitarmos a interioridade das personagens, ao seguirmos os seus pensamentos, dilemas e transformações, somos confrontados com perguntas que talvez nunca nos tivéssemos feito, e com respostas que desconhecíamos procurar. Ler é um exercício empático e introspectivo, uma viagem simultaneamente para dentro e para fora de nós, onde o que é estranho pode tornar-se familiar e o familiar se revela sob uma nova luz.

Surgem pontualmente, neste livro, citações interessantes e pertinentes de autores como Steinbeck e Hebbel. Já as conhecia antes, ou descobriu-as durante a pesquisa para esta obra?
Confesso que a frase de Hebbel – «O sono é um rastejar do homem dentro de si mesmo» – foi uma feliz descoberta, mas a citação de “A Pérola”, de Steinbeck, já era minha conhecida e foi ali colocada – bem como toda essa passagem do livro – como uma espécie de “easter egg” para quem leu o “Enquanto o Fim Não Vem”.
“As melhores decisões são aquelas que tomamos sem nos darmos conta”. Pode revelar-nos qual sente que foi a melhor decisão que tomou até hoje?
Não ter nunca abdicado dos meus valores para alcançar seja o que for, independentemente das consequências. Não me ter calado quando senti que devia falar, nunca ter ignorado quando achei que devia intervir. Paguei várias vezes um preço elevado por ser assim, mas hoje tenho a certeza de que foi a melhor decisão.
Quais os sonhos que já realizou e quais gostaria de realizar?
Sou mãe e trabalho a fazer aquilo que me faz feliz. Não há nada que me faça realmente falta. Sou uma privilegiada. Mas cresci numa casa com um pequeno jardim e tenho saudades dessa maravilha de acordar com o cantar dos pássaros, de regar as plantas com mangueira ao fim do dia, de comer os frutos das minhas árvores. Tenho esse sonho.
O que podemos esperar encontrar no seu próximo livro?
Uma distopia que reflecte acerca dos perigos da dessensibilização, da morte da empatia. É um tema que me inquieta diariamente, que nos devia inquietar a todos. É isso que pretendo com este novo romance: apontar a lupa e inquietar.
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Foto: Bruno Simão
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