Sob o calor de Itália, em ruas repletas de História e de Arte, três personagens são invocadas pela prosa profundamente poética de Leonor Baldaque: o pintor renascentista Piero della Francesca, um pintor dos dias de hoje com o mesmo nome, e uma jovem com alma de artista, que persegue a beleza e ama os dois. Os encontros entre eles, e de cada um com a própria Arte, constituem a matéria de que é feito “Piero Solidão” (Quetzal, 2024), o primeiro livro da autora a ser editado em Portugal (ler crítica).
Uma entrevista impunha que perguntássemos como descobrira Piero della Francesca. Mas é-nos revelado muito mais do que isso, pois Leonor Baldaque partilha generosamente a sua abordagem à arte, do trabalho de criação ao desbravar da senda de ser mulher artista, passando pela liberdade que encontra na língua francesa e pela sua relação com cidades marcantes. Aproveitando uma das suas frases, fazemos votos para que os Deuses do Olimpo continuem a recompensar-lhe o trabalho.
Revelou-se como artista na qualidade de actriz em filmes de Manoel de Oliveira. A experiência na Sétima Arte reflectiu-se na sua escrita?
Eu não sei de que forma, mas de certeza que sim. Foi uma abordagem da Arte que eu aprendi. Que caminhos tomar para chegar onde se quer? Um plano são posições e cores, ritmos de movimentos, entradas e saídas de cena, décores, tudo isto está presente na escrita. Pensar nestes moldes, e ver um mestre construir os seus planos, criar os seus efeitos, sim, de certeza que isso chegou até mim, de uma maneira ou de outra. As Artes não são estanques, são diferentes, mas não estanques. O ritmo está em mim. É a coisa mais importante. Ter o ritmo em nós. Em qualquer Arte, até em pintura, de certa maneira. E depois, não nos fiarmos no «talento», mas sim no trabalho… O Manoel era um imenso trabalhador. Foi um homem muito importante na minha vida, comecei a trabalhar com ele tinha 19 anos. Foi muito formador.
Os dois livros que publicou até hoje foram escritos em francês. Como se relaciona artisticamente com as várias línguas que domina?
Eu sinto-me muito à vontade em França, a falar Francês, a viver naquela língua, é muito natural. Não há artifício em mim, em Francês. Chego mais depressa ao coração, ao âmago das coisas importantes. Falo muito em francês, leio muito, li muito, encontrei muitas pessoas e troquei muitas ideias, em francês. Tornei-me um ser político e social em francês. Em Paris caminho na rua e sinto uma imensa liberdade. Conheço os recantos da cidade, e aprendi a conhecer muito recantos em mim, lá também. Mas em Roma também, onde vivi 4 anos. As cidades são espelhos da nossa alma, a certa altura. O que vemos, é como um reflexo do que trazemos em nós. A beleza, o caos, os outros, nós, a solidão, o retiro por entre o caos. Eu não poderia ter escrito um primeiro romance que não fosse em francês, não poderia. Para chegar até mim. Muitos anos depois desse primeiro romance, num café de Paris, fui-me sentar muitas manhãs para escrever um romance em português, ainda inédito. Já tinha chegado até mim.
Em “Piero Solidão” é perceptível um fascínio por Piero della Francesca, um dos mestres do Renascimento. Como descobriu este pintor e como se desenvolveu a relação com ele?
Foi o acaso. Foi o amor. O amor é sempre um acaso. E ao mesmo tempo, é um destino. Falaram-me dele, e uma pessoa que eu adorava adorava Piero della Francesca. Então, fui vê-lo, em carne e osso, por assim dizer. Nos muros da Igreja de San Francesco. Eu poderia ter beijados aquelas paredes, poderia ter lá ficado para sempre, se não soubesse escrever um romance sobre essa experiência.
Quais são as suas principais fontes de inspiração literária (em geral e neste livro concreto)?
Tudo, tudo, o que leio, o que vejo, a música que ouço, sem dúvida. A arquitectura, os seus volumes e silêncio. O silêncio depois da música, depois da poesia. A chuva, o sol. Tudo. A inspiração vem depois do trabalho. E como trabalho. Não há outra maneira. Quanto mais trabalhas, mais estamos inspirados. Os Deuses do Olimpo recompensam o trabalho!
Detectamos laivos de Penélope na figura feminina deste livro: “As palavras que entraram na minha noite, que depus numa folha, que depois perdi por horror a essas palavras da noite, que pela manhã não reconhecia, que a manhã desfazia […]” Sucede-lhe algo assim, no processo de escrita? O que pode contar-nos acerca dele?
Nunca tinha pensado nisso, e gosto muito da figura de Penélope. Nunca pensei ser como ela, nem que o meu personagem poderia ser como ela. Mas esse é o centro do trabalho de criação, seja da criação de um livro, seja da criação de uma relação amorosa, de qualquer processo tumultuoso: muito do que se passa, tem que ser desfeito, revisto sob outra luz, analisado para ver se fica connosco ou deixamos partir. Por muito feminista que eu seja, e sou, muito, e leio muito literatura feminista para me libertar de muitos condicionamentos, mas há uma herança do «ser mulher» muito antiga e inconsciente que nos acompanha. Por vezes é um fardo imenso, mas esse ficar a fazer e desfazer algo, e fazer assim avançar a criação de nós próprios, ou de uma obra literária, ou de uma relação amorosa, é algo que me agrada. Porque é assim que se passa, na realidade.
Quanto ao significado de ser artista, a protagonista interroga-se acerca da importância de “ter uma espécie de surdez do que não se deve ouvir, escapar aos escolhos da vida com a graça de um bailarino, após horas de trabalho”. A que tipo de escolhs teve de escapar, e com que frequência optou por uma surdez selectiva?
A muitos mesmo. Ser Artista, e ser Artista mulher, é um desafio imenso. Porque a maior parte da sociedade burguesa, materialista, «produtiva», não percebe nada de nada à vida de Artista. A isso se acrescenta uma sociedade machista e paternalista. Então, temos que ser rápidas, lentas, secretas, espertas. Temos que arranjar aliados. Basta um. Mas pelo menos um. E depois, ajuda muito conhecer a vida de outras mulheres Artistas. A própria Virginia Woolf conta no seu diário como lhe falavam, quando dizia que «escrevia». Depois de termos um primeiro livro publicado, as coisas mudam. Mas há sempre novos desafios que não se podem adivinhar.
Há um momento em que esta figura feminina procura o homem amado e encontra fechada a porta para o espaço imenso que é a vida criativa dele. Até que ponto é a solidão importante para si, no decurso do processo criativo?
Eu diria que é tudo. É na solidão habitada pelas nossas múltiplas experiências que surge a criação. Apenas ali. É o seu local.
Acerca do corpo de um artista, escreve que este se reconhece “porque nesse corpo se cruzam a inspiração, o dever, a antecipação, e as vozes que falam todas ao mesmo tempo”, e também que “um corpo de artista pressente certos gestos que fará, mas não conhece a sua forma exata, a sua intenção, nem o seu resultado”. Que vozes falam dentro de si? Apesar de todas as incógnitas, o que consegue antecipar ou pressentir acerca do seu caminho nas artes a que tem vindo a dedicar-se?
Que vozes falam em mim ? Tantas. Tenho um tropismo profundo, essencial, vital, em relação a essa experiência que é sentar-me com um papel e uma caneta. E agora, desde há uns anos para cá, a guitarra e a canção têm sido parte de todos os meus dias. Falar a cantar, no ritmo de uma canção, de um poema, que descoberta imensa. Não saio daqui. Mas a vida é tão inesperada. Gosto de muita coisa em Arte. Desse infinito.
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