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Entrevista: Leonardo Padura

Por Pedro Miguel Silva · Em 17/05/2024

Um dos melhores retratos de Mario Conde, o tenente da polícia cubana nascido e criado em Havana, foi tirado pelo seu grande amigo Carlos Magricela, no terceiro livro que compõe o Quarteto de Havana: ”um cabrão sofredor, um nostálgico incorrigível, um masoquista por conta própria, um hipocondríaco à prova de choque e o tipo mais difícil de consolar deste mundo”. A boa notícia é que Mario Conde, espécie de alter-ego de Leonardo Padura, está de regresso em “Pessoas Decentes” (Porto Editora, 2023), o 10º livro protagonizado por Conde – e um dos melhores desta recomendada série. Estivemos à conversa com o escritor cubano na última edição do Folio, em Óbidos.

“Lembrava-se. Ainda se lembrava. Tinha esquecido muitas outras coisas de uma vida que se ia tornando aterradoramente longa e sabia que certas desmemórias funcionam como uma estratégia de sobrevivência. Impunha-se soltar lastro para se manter à tona e não encalhar nos rancores, na contabilidade das ilusões truncadas, na evocação urticante de promessas um dia criadas e tantas, tantas vezes incumpridas”. Começa assim “Pessoas Decentes”, a mais recente aventura de Mario Conde – a 10ª -, personagem que inventou para escrever uma crónica contínua da vida cubana. Até que ponto são Leonardo Padura e Mario Conde a mesma pessoa?

Cada vez se parecem mais um com o outro (risos). Cada vez se parecem mais. Creio que Conde, o polícia de investigação, nasceu em “Passado Perfeito”, uma novela que escrevi por volta de 1990 e que foi publicada pela primeira vez no México. Necessitava de um polícia, porque um crime maior em parte alguma do mundo é investigado por um privado. É a polícia que tem os recursos científicos para a investigação. Não seria verosímil inventar um investigador privado para a Cuba do presente. Conde é por isso um polícia mas, pelas características que tem – a sua maneira de ser, de ver a realidade e de entender a vida -, é ao mesmo tempo um anti-polícia. E partilha comigo algumas características, que são parte da minha personalidade. Somos da mesma geração, uma geração que teve uma experiência de vida muito homogénea. Partilhamos a mesma paixão pela literatura, o olhar sobre o mundo, as relações de amizade que vamos estabelecendo e que são fundamentais. Mas temos ambos biografias pessoais: eu sou um escritor, ele é um polícia. Mario Conde tem sido sobretudo os olhos que me permitem ver a realidade cubana e fixá-la numa espécie de crónica, do que tem sido a minha vida em Cuba.

“A Transparência do Tempo”, o último livro protagonizado por este “velho de merda”, “fiel aos seus ressabiamentos”, terminava a 17 de Dezembro de 2014, data em que os governos de Cuba e dos EUA anunciaram o início das conversações para o reestabelecimento de relações diplomáticas. “Pessoas Decentes” arranca dois anos depois, em vésperas da visita a Cuba de Barack Obama, 88 anos depois da última visita de um presidente americano a Cuba. O que mudou, desde então, na relação entre os dois países e na vida de Cuba?

Viveram-se, entre o final de “A Transparência do Tempo” e “Pessoas Decentes”, dois anos de uma grande intensidade histórica, social, cultural e económica muito importantes – e aqui falo de uma Havana em efervescência, com muito turismo, onde circulava dinheiro, se criavam pequenos negócios e se realizavam eventos como um concerto dos Rolling Stones ou um desfile da Channel. Obama chega a Cuba e diz que vem oferecer uma rosa branca, para que conversemos e mudemos esta relação tensa que vai persistindo. Foi um momento importante, que mobilizou a sociedade cubana. Uma mobilização que o próprio governo cubano temeu, receando que coisas se poderiam desviar do plano por ele traçado. Porém, a história entre os dois países é tão traumática que teimamos sempre por regredir. Neste caso, a regressão aconteceu com Donald Trump. Numa crónica de então, escrevi sobre uma conversa que tive com alguém que comprou um automóvel americano dos anos cinquenta, com o plano de o converter num descapotável para passear turistas. Essa personagem dizia-me então: “Oxalá Trump não me lixe o negócio”. E Trump lixou-lhe mesmo o negócio. Começaram restrições de todo o tipo, medidas de carácter económico e político que reverteram a política de Obama em relação a Cuba, e a pandemia que veio depois ainda complicou mais as coisas. Tudo isto – Trump, o embargo, a pandemia -, a juntar à ineficiência económica cubana, provocou a imensa crise em que vivemos hoje em dia. Só em 2022, cruzaram a fronteira do México com os Estados Unidos entre cerca de 230, 240 mil cubanos. O que demonstra até que ponto a realidade da vida cubana voltou a ser difícil, intensificando o desejo de partir.

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Num mundo em constante mudança, Mario Conde é o historiador que não esquece – ou que não nos deixa a nós, leitores, esquecer.

Desde o primeiro livros que os amigos de Conde o olham como um “recordador”, palavra que não existe em espanhol. Alguém que desfruta recordando, e que trata sempre de manter viva a memória e o passado.

Neste “Pessoas Decentes”, o passado é talvez mais importante do que o tempo presente. A certa altura lemos isto: “O passado é indelével e a história nunca acaba”. É uma das ideias marcantes que o livro quer fazer passar?

Essa é outra característica que partilho com Mario Conde: a necessidade de conhecer o passado para explicar o presente. “Pessoas Decentes” é uma mistura de livro policial, romance histórico e retrato social, um livro bastardo e mestiço, como deve ser toda a arte. A pureza é a pior inimiga de um artista, há que estar aberto a todas as possibilidades. Ao mesmo tempo, este olhar para a história cubana e o passado não é apenas local. Sentimos medo, alegria, inveja, nostalgia, melancolia, elementos que fazem parte da condição humana e que são fundamentais na literatura. As formas que temos de nos relacionar com a realidade, que são sempre as mesma. Milan Kundera dizia que o conhecimento da condição humana é a razão de ser do romance, algo com que concordo em absoluto. A função da literatura é chegar à alma das coisas, e todos os caminhos são possíveis – incluindo olhar para o passado para compreender o presente.

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Nessa viagem ao passado, há um olhar atento para a censura e a repressão culturais dos anos 70, momento em que se proibiam discos e se perseguiam pessoas, fosse pelas suas ideias políticas, crenças religiosas ou preferências sexuais. O que mudou desde então é suficiente para dizer que em Cuba se vive em democracia e que a liberdade de expressão, seja ela sexual, política ou cultural, existe?

Neste romance, há o assassinato de alguém que foi protagonista de uma forte repressão cultural, que se viveu em Cuba nos anos 70. Tempos onde se podia ser condenado por qualquer delito: uma ideia política, uma crença religiosa, uma tendência sexual – a homossexualidade era crime. Foi algo que se viveu com muita intensidade na sociedade e no meio cultural cubano dos anos 70, entre artistas, professores, estudantes. A partir dos anos 80, os métodos mudaram mas a essência dessa política cultural não. Continua a acreditar-se – e a exigir-se – que a cultura gire em função do projecto social. Há uma frase muito repetida em Cuba, que diz que a arte é uma arma da revolução. Portanto, a arte deve ser revolucionária ou estar de acordo com o processo revolucionário. Há também uma outra frase, proferida por Fidel Castro em 1961, em que dizia, visando a arte, a literatura e a cultura, qualquer coisa como ”com a revolução tudo, contra a revolução nada”. Esta continua a ser a política cultural cubana, o que levou a que nos, últimos 30, 40 anos, muitos artistas optem pela auto-censura. Sabem que há limites que não podem transgredir para que os seus livros, os seus filmes, as suas peças, as suas obras possam circular em Cuba. Todas as instituições culturais pertencem ou respondem aos interesses do Estado: as salas de cinema, as galerias, as editoras. De qualquer forma, nos últimos anos abriram-se algumas janelas e alternativas, algo que se deve muito à própria evolução da sociedade. Hoje em dia, com todas as possibilidades trazidas pelo mundo digital, é difícil manter o mesmo controlo. “Pessoas Decentes”, por exemplo, teve uma cópia digital a circular por Cuba, e muitos tinham já lido o livro pouco depois de ter saído em Espanha. Nos anos 70, este livro não existiria em Cuba.

“Pessoas Decentes” é quase um policial histórico ou uma crónica jornalística com muito policial lá dentro. Um livro ligado por dois momentos, muito afastados no tempo, à distância de mais de um século. No primeiro, recuamos até à instituição da República e à luta pela independência cubana; no segundo, viajamos até 2016, ano em que os Rolling Stones tocaram em Havana, num concerto gratuito para mais de 100000 pessoas. O que une estes dois momentos, e como foi o desafio de os juntar num único romance?

Em 2016, Conde acompanha a efeverscência da sociedade cubana, com a visita de Obama e tudo mais. É neste período que ocorre o assassinato de um velho repressor dos anos 70, mas também um outro, bastante cruel e violento, que lançará Conde na investigação. Há depois uma outra história, que ocorre por volta do ano de 1909, 1910, em redor de um personagem histórico real. Alberto Yarini y Ponce de León, que foi o rei da prostituição em Havana. Alguém que teve uma participação política importante, com um discurso muito raro para a época, que rompia com os códigos instituídos. Tinha uma relação muito próxima, de simpatia e de solidariedade, com o sector negro da população, mas também com as velhas prostitutas. Protegia-as, dava-lhes comida, um lugar onde dormir. Era uma personagem rara, que se converteu no homem mais popular de Havana, e que quis utilizar essa popularidade para a sua carreira política. Interessava-me, neste livro, entrar num fenómeno universal que continua vivo: a utilização da mulher no mercado do sexo. O livro chama-se “Pessoas Decentes” porque, numa sociedade dominada fundamentalmente pelo pensamento dos homens, se consideram as prostitutas pessoas indecentes, quase sempre sem se perguntar o porquê de se terem convertido em “pessoas indecentes” – o que acontece quase sempre por questões de sobrevivência. Quando aparece o cadáver da primeira prostituta, o polícia que acorre ao local do crime mostra o seu alívio. Sendo uma prostituta, não interessa.

Mario Conde acaba, finalmente, por cumprir o sonho adiado: tornar-se um escritor. Não deixa de ser curioso ver um livro escrito a quatro mãos: pelo escritor e o seu alter ego.

Quando estudei Física ou Matemática, não me recordo bem, aprendi que as linhas paralelas se unem num ponto, que é o infinito. O infinito deste livro é Havana e é Mario Conde, que investiga uma história enquanto escreve uma outra – a de Yarini e da prostituição. E fá-lo através de uma personagem que, de alguma forma, é o seu próprio alter-ego, um polícia que tenta ser uma pessoa decente num mundo absolutamente indecente.

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Na escrita de “Pessoas Decentes”, colocou-se nos papeis distintos do inspector Mario Conde e do escritor Leonardo Padura?

Tudo é Leonardo Padura. E tudo é, também, um pouco Mario Conde. Conde tem uma série de características que tenho de respeitar. Não posso, em função de um determinado romance, alterar as suas características, porque tal seria uma traição. O papel de ambos é assim repartido, e tem sido um acordo bom para ambos.

Como tem olhado para a literatura policial ao longo dos anos, desde os tempos em que este era considerado um género menor aos dias de hoje, em que se tornou numa bandeira literária de alguns países do norte da Europa?

Tem sido um processo muito longo, o da criação de um género policial com um carácter estético, social e político, semelhante ao de qualquer literatura. Isto começou a ser evidente no tempo de mestres como Dashiell Hammett ou Raymond Chandler. Porém, a partir dos anos 60 e 70, esse processo intensificou-se. Tanto que a academia e a crítica tiveram de aceitar que a novela policial faz parte do mainstream da literatura de muitos países do mundo. O que se passa é que existem bons e maus escritores de novelas policiais. Sou convidado a participar em eventos literários para os quais outros escritores não são convidados, porque são escritores de novelas policiais e não superaram essa condição de escrever sem uma fórmula. Seria difícil que um prémio literário importante fosse atribuído, por exemplo, a um escritor como Dan Drown. Quando olhamos para o fenómeno Millennium, percebemos que há uma operação comercial muito bem montada. Mesmo ao lado está Henning Mankell a escrever boa literatura e sem muitos darem por isso. Mas isto passa-se em Portugal, em Espanha, no Brasil, em Cuba. Por vezes torna-se difícil distinguir a fronteira entre a boa e a má literatura policial.

Em dias onde se reescrevem livros e se impõem códigos de etiqueta, é um gosto ver que Mario Conde continua a falar de rabos e de mamas como o fazia há trinta anos atrás. O que diria Mario Conde desta polícia dos bons costumes que parece ter tomado conta do meio editorial?

Dá-me muito medo, o facto de se poder ser condenado ou cancelado por uma opinião. Acredito que, hoje em dia, dificilmente Salman Rushdie encontraria um editor para os “Versículos Satânicos”. Há que ser politicamente correcto. O processo de alteração de determinadas obras literárias em nome do politicamente correcto é algo muito perigoso, que não tem a ver com os bons costumes mas sim com querer alterar a História. Se, num livro de Mark Twain, “nigger” for transformado em “afro american”, está a perverter-se a História, excluindo a dor de milhões de pessoas que sofreram com a escravatura e o racismo nos Estados Unidos. Se tal ocorresse, seria uma catástrofe cultural e um desastre político.

Arrisco dizer que, muito provavelmente, Conde responderia assim, enquanto ia aguardando pela sua dose extra de rum: “mandando tudo para o caralho. Tudo”.

(Risos)

–

Fotos: Luísa Velez

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Pedro Miguel Silva

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