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Entrevista: João Tordo

Por Pedro Miguel Silva · Em 24/06/2018

No caso de existir um Mundial da Literatura, o seu nome faria certamente parte da convocatória, actuando quem sabe como guarda-redes, posição que mereceu, em filme de longa-duração, uma referência ligada à angústia. Falamos de João Tordo, um dos romancistas portugueses actualmente em melhor forma, que depois do triunfante tríptico dos Lugares Sem Nome decidiu viajar no tempo e, também, fazendo piscinas entre Lisboa e o Japão. Situado entre estas duas geografias, “Ensina-me a voar sobre os telhados” (Companhia das Letras Portugal, 2018) mantém todo o cerne existencialista que tem atravessado a sua escrita, ainda que o ar seja muito mais respirável e o humor esteja sempre à espreita, sobretudo através de Ludmila, alguém que nos faz ler para dentro com pronúncia.

Na última edição do LeV – Literatura em Viagem estivemos à conversa com João Tordo sobre este livro feito de amizades improváveis e de amores construídos a partir de gestos, objectos e silêncios, e que mostra que a dor, ao invés do fim do mundo, pode mesmo ser, como o disse em tempos Guerra Junqueiro, o substrato último do universo.

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Escrever a trilogia ou, como preferes dizer, o tríptico dos lugares sem nome, tirou-te anos de vida?

Não, pelo contrário. Foi uma experiência bastante enriquecedora, mas cansativa no sentido em que planeei tudo aquilo ao longo de três anos, para poder depois passar à fase seguinte. Mas foi mesmo necessário. Do ponto de vista formal, são livros bastante diferentes dos anteriores. Mesmo a prosa tem um lado mais poético, onírico, quando cheguei ao terceiro volume estava já bastante cansado. Foi o número certo, não teria conseguido escrever mais um. Se a missão tivesse sido escrever o Quarteto de Alexandria teria ficado pela Trilogia de Alexandria.

Foi um pouco transformador em relação aos teus livros anteriores.

Sim, fui abordando temas mais psicológicos. Nos romances anteriores os temas estavam presentes, mas eram abordados de uma forma menos intensa. Sobretudo em “O Luto de Elias Gro”, o mais intenso dos três, onde os temas da perda e da solidão foram abordados com menos recurso à narrativa e uma maior densidade das personagens. Acabei por escrever três romances que são quase puramente romances de personagens, onde a narrativa é uma coisa secundária. E isso não é fácil. Nem para um escritor que está muito habituado à narrativa, que é o meu caso, nem para o público, que também estranha haver de repente romances onde parece não se passar muita coisa. Uma das minhas inspirações sempre foi “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, um romance incrível onde não acontece nada, ou onde acontece muito pouco: o Ricardo Reis chega a Lisboa, depois volta a Bragança, arranja casa própria, mas não acontece assim muita coisa. Mas é um romance de uma riqueza interior enorme, e para mim foi uma grande inspiração porque quando o li percebi o que é que a Literatura podia fazer para além de contar histórias e de te levar numa narrativa. Foi importante fazer, isto até para aprender como se desenvolvem psicologicamente as personagens, sem recurso a uma narrativa tão marcada.

És de certa forma um coleccionador de fragmentos que, a certa altura, acabam transformados em matéria de escrita. No caso deste livro foram vários os fragmentos. Fala-nos um pouco da origem de Ludmila, dos ilhéus açorianos e do desejo de voar sobre os telhados.

A Ludmila tem origem na infância, é uma personagem que tem uma referência real mas muito distante no tempo, cerca de trinta e quatro anos. Não sei o que é feito dela, mas há certas coisas que vão ficando connosco. Os ilhéus surgiram numa visita à Terceira, e estar ali, naquela costa defronte para eles, foi impressionante do ponto de vista sensorial. Assim que os vi decidi que queria usar aquele lugar como uma situação para uma personagem. Voar sobre os telhados tinha não só a ver com a história dos Tsukuda, a história da família japonesa que é contada no livro, mas também com um sonho muito real que tinha quando era adolescente, entre os meus 14 e os 18 anos. Um daqueles sonhos que, mesmo acordados, temos dúvidas se não terá mesmo acontecido. O que leva depois aquela barreira de separação que também não é muito nítida, entre realidade e sonho, e que também é falada no livro: o que é um sonho, e porque é que o sonho se sente de uma forma tão verdadeira? O resto são pequenas experiências que foram acontecendo ao longo do tempo e que eu vou guardando, recordações. A Ludmila é evidentemente uma personagem de ficção, mas tem o seu princípio numa empregada doméstica que, de facto, existiu. Assim como os ilhéus e o próprio Tsukuda, que é inspirado num tipo que se sentou ao meu lado uma vez durante um jantar. Nesse aspecto o escritor é um pouco uma manta de retalhos: tens tudo aquilo para construir uma narrativa em torno das personagens, deixando que sejam elas a contar a história, tentando não embrulhar demasiado e deixar que sejam elas a conduzir o enredo. E isso é a parte mais difícil, aquela em que o escritor entrega o controlo. Durante os primeiros livros não fui capaz de fazer isso. Foi preciso tempo e alguma maturidade.

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É curioso que, sabendo que cortaste mais de 100 páginas, tenhas encaixado o conto que acabou por dar origem a tudo isto. Como nasceu esse conto e como decidiste incluí-lo por inteiro no romance?

O conto está ligeiramente reescrito, porque na versão original tinha mais referências ao apartamento. Aqui é mais imaginado e adaptado ao centro da narrativa, no sentido em que há duas realidades ali que se encontram embora nunca se vejam, dois mundos que se unem. Até porque o conto se passa em 1985, entre a parte japonesa do romance, no princípio do século XX, e a parte portuguesa, que acontece nos dias de hoje, na época em que o Henrique, um dos protagonistas, ainda é um miúdo. Incluí o conto porque foi fundamental para o resto do livro, e também para se poder compreender melhor a relação da Ludmila com o Saburo e por que Ludmila aparece no livro. É uma personagem feminina e, ao mesmo tempo, um comic relief.

Achei-a uma das personagens mais interessantes do livro. Fez-me lembrar um pouco o Pherb, dos desenhos animados “Phineas and Pherb”, alguém que quando fala – o que acontece com pouca frequência – diz qualquer coisa quase sempre iluminada.

Tem também um lado cómico. Está sempre a inventar provérbios que não existem, com aquela pronúncia de leste que troca o português. É uma das personagens de que mais gosto porque oferece um lado mais cândido e suave a uma narrativa que já de si e bastante difícil. Ela acaba por perceber bastante melhor o que é um ser humano do que o narrador.

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Há uma imagem que me ficou gravada: a de a dor ser algo de hereditário. Algo que, mesmo falhando uma geração, aparecerá na seguinte.

Se entenderes a dor como uma série de outros substantivos que se aplicam a essa definição geral – a insatisfação, a inquietação, a angústia -, a literatura ancora-se nessas formas de sofrimento. Mesmo nos romances com um lado humorístico fortíssimo. Estou a ler “A Vida em Surdina”, do David Lodge, sobre uma personagem surda que não percebe o que as outras pessoas dizem, alguém que troca tudo e que, apesar de todas essas situações cómicas, tem um substrato de sofrimento – alguém que sofre com a sua deficiência. A literatura está toda ancorada nisso, portanto acho não falo de nada de novo. Talvez nestes meus últimos romances isso seja mais nítido, porque coloco as personagens em situações mesmo complicadas. “O Luto de Elisas Gro” é uma fantasmagoria, de um homem que parte para uma ilha deserta e de repente se vê confrontado com uma solidão enorme; o Paraíso é o mais leve dos três, mas o Deslumbre também é um romance pesado nesse sentido. Este não é um romance pesado, no fundo acaba por ser leve, mas assenta sobre uma série de dores acumuladas.

Mesmo a levitação aparece como algo associado à dor, ao sofrimento, a uma religiosidade um pouco monástica. Um super-poder ferido.

Isso acontece com todos os super-heróis, que têm um super-poder que é, ao mesmo tempo, uma benção e uma ferida. O Homem-Aranha tem a tia May, que está sempre doente, e o tio morre por causa dele. O Super-Homem perde os pais numa galáxia distante. Tudo isto parte desse substrato último do universo, como dizia Guerra Junqueiro referindo-se à dor. Os super-poderes são construídos por cima disso – ou apesar disso.

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Outra das imagens que fica deste livro é a das relações humanas como algo insondável, onde mais do que a família ou o sangue as ligações surgem de um lugar desconhecido a que poderemos tentar chamar de alma. O que torna este narrador, director de um liceu e alcoólico em recuperação, uma espécie de irmão de Henrique Tsukuda, um japonês conflituoso, lunático, psicótico, aparentemente insensível a quaisquer laços afectivos?

Sim, ele tem esse lado insensível. O narrador passou por problemas e dificuldades, e está numa tentativa de se reconectar, não só com o filho, de que esteve afastado uma série de anos por causa do alcoolismo, mas também com o mundo. O Tsukuda é um homem perdido, que está a procura de consolo, de identificação, algo que todos nós procuramos: que os outros se identifiquem connosco, que tenhamos algumas semelhanças e que consigamos ver essas semelhanças e não as diferenças. As duas personagens acabam por se identificar nessa tentativa de sair da solidão, ainda que ela esteja sempre lá e seja um dos aspectos fundamentais da vida humana: sabermos viver com essa solidão e com essa dificuldade que temos, muitas vezes, em chegar ao outro. No decurso dos nossos dias, pelo menos para mim, não são muitas as ocasiões em que me sinto completamente ligado ao mundo, que estou em paz junto de outros. Normalmente sinto-me melhor sozinho, e sei porque é que isso acontece. Sempre fui um miúdo e um adolescente solitário,  a solidão é para mim um lugar muito confortável. O meu desafio na vida é sair disso, ligar-me aos outros, reconectar-me, portanto os livros têm muito a ver com isso. Se calhar,  para outras pessoas que são muito sociáveis, o desafio e aprenderem a estar sozinhas. Há pessoas que não conseguem. Mas mesmo essas pessoas sentem o medo e a ferida.

É uma relação onde existe algum desequilíbrio na entrega, ficando as despesas quase sempre a cargo do narrador.

Ele reconhece no Henrique uma grande parte de si, talvez o ponto a que poderia ter chegado se não tivesse parado de beber. Talvez se identifiquem pela ferida de separação dos seus entes queridos, por haver uma membrana entre eles e o mundo. É uma relação muito orgânica, sao personagens muito humanas mas extremamente complicadas e complexas.

Além desta amizade pouco consumada, o livro é feito de outras relações algo improváveis: a de Ludmila com Saburo, a do narrador com o filho que abandonou e com quem procura a redenção.

Não me interessa o realismo na ficção. Talvez por isso tenha alguma dificuldade com os romances históricos, que tendem a ser realistas. Prefiro encontrar as ligações que são mais inesperadas e imprevisíveis, ou mesmo que rocem o inverosímil. Isso agrada-me, que nos meus livros as coisas se aproximem da inverosimilhança, que as personagens não sejam tão a preto e branco. No fundo somos todos cinzentos, temos muitas camadas.

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Foto: Pedro Ferreira

As duas geografias deste livro, situado entre o Japão e Portugal, parecem corresponder a dois estilos de escrita distintos, que vão também ao encontro dos sentimentos que nelas predominam. Se, no Japão, é a crueldade – e também o desejo, a cobiça e a separação – que domina, em Portugal domina a compaixão.

Quando comecei a escrever pensei que a primeira parte seria em Portugal, sobre um homem à procura de reconciliação consigo próprio e com os outros, e que a parte japonese seria à volta da crueldade e da austeridade. Aliás, a única parte feliz na parte japonesa surge mesmo no final, quando o Saburo conhece a Graça revelando um momento de esperança. O resto é tudo de uma crueldade incrível, a começar com o que o pai faz ao filho, exilando-o nos ilhéus e deixando-o lá para morrer. Por isso o estilo de escrita, bem como as pessoas gramaticais, teriam de ser bastante diferentes. Essa foi a grande dificuldade do livro: não me perder e encontrar os pontos comuns entre as histórias, sem deixar que elas se tocassem demasiado. Gostava sobretudo que quem começasse a ler o livro não percebesse logo a ligação, mantendo o leitor em suspenso até ao sexto ou sétimo capitulo, que é quando estas duas histórias tão diferente e afastadas temporalmente se começam a ligar. Essa foi a parte difícil de conseguir, implicou recorrer muito à memória, reler o que já tinha escrito e, subtilmente, encontrar forma de ligar as duas narrativas.

A loucura atravessa também toda a narrativa, e a certa altura lemos isto: “Sabes qual é a diferença?, continuou. É que, nos tempos de Cervantes, um homem como o fidalgo de La Mancha não era internado num hospital e medicado até ficar a babar-se num sofá com a língua de fora. Podiam chamar-lhe louco, mas era livre de acreditar em si próprio. Já reparaste que vivemos, deste lado do mundo, em torno de um mito construído em contradição com o que vulgarmente se define por “sanidade”? Um homem crucificado, mortinho da silva, que ressuscita ao fim de três dias! Aí está a tua sanidade, a tua devastadora contradição. Desafio qualquer um a explicar-me que raio é isso da loucura. E então concederei que Quixote é louco, e que eu também sou louco“. Apanhando a boleia de Charlie Hebdo, não poderíamos todos usar uma t-shirt que dissesse “Somos todos loucos”?

Acho que tem a ver um pouco com o entendimento do que é a loucura e o que é a normalidade. Chesterton define o louco como alguém que não perdeu a razão mas, antes, que perdeu tudo excepto a razão. Tem muito a ver como nós observamos a loucura, dizemos “o tipo perdeu o juízo”. Mas ele não perdeu o juízo, ele  só tem juízos: causas, consequências, numa racionalidade imparável incapaz de ter gestos naturais. Os loucos andam pela rua obsessivamente à procura de qualquer coisa. A racionalidade é sobrestimada hoje em dia, não temos espaço para a loucura que, em muitos casos, é apenas alegria. Há um livro interessante de uma autora irlandesa, “Anjos nos Meus Cabelos”, que conta a história de uma rapariga que desde miúda vê anjos. Os médicos tentaram tudo, deram-lhe comprimidos, anti-psicóticos, internaram-na, até que tiveram de aceitar que ela era assim. Acho que estas experiencias de transcendência, que muitas vezes são encaradas como loucura, são outras maneiras de perceber a realidade, outras percepções. São pessoas que tem outros registos kármicos, outras camadas de consciência que a pessoa comum não tem, e portanto é ai que entra a questão da loucura. Gosto dessas personagens que têm esse registo algo transcendente, e que por isso são metidas dentro de hospitais psiquiátricos.

 João Tordo, Companhia das Letras, Deus Me Livro, Entrevista, Deus Me LivroUma espécie de  anti-heróis.

Sim, se pensares bem o Homem-Aranha é um psicótico, um tipo que de repente escala paredes e atira teias pelas mãos. É um caso de um louco, mas de um louco que salva vestido com um fato de aranha. Os super-heróis são casos de loucura. Quis também abordar essa realidade, a das patologias, de os diagnósticos por vezes não serem os mais correctos.

Por falar em Deus, lemos também isto: “…falas de Deus como se fosse uma coisa vulgar, utilitária. Que estupidez! Deus é nada, coisa nenhuma. É a nossa audácia de dizer sim ao impossível, quando tudo nos impele a dizer não. Ou um talvez resignado, que é muito mais moderno e ridículo. Quando é que aprendes?“. Qual é a tua relação com Deus ou, se preferires, com a ideia de haver uma consciência superior?

Acho que no livro isso é dado de várias formas. O narrador tem uma relação espiritual, a dos alcoólicos anónimos. Para mim é algo que tem a ver com a percepção do que é a consciência. Quando Tsukuda diz que Deus não é nada, diz ao mesmo tempo que ele é tudo, que todas as coisas são Deus e que nos cabe a nós tomar essa decisão: de a fé não ser uma coisa que nos acontece mas que desejamos.

Uma dimensão mais humana.

Sim, a vontade de querer que a minha vida não seja apenas controlada pela razão, de poder haver um elemento exterior ao qual chamamos milagroso e que, no fundo, é algo que está dentro de mim. É como aquela velha história da definição de fé: alguém olha para um homem na corda bamba e tem fé que a pessoa chegue ao outro lado. Ter fé e pores-te as cavalitas desse tipo. Quando Tsukuda fala nessa questão da fé é isso, de Deus não ser uma questão utilitária. De pensar que por ir à missa e rezar muito a vida irá correr bem – ate porque há muita gente que vai à missa e reza muito e a vida corre-lhes mal. No fim, a vida vai correr mal a toda a gente, vamos todos morrer.

É de Ludmila, uma das personagens mais fascinantes do romance, que surge uma caracterização dos japoneses que não encontramos em enciclopédias, guias turísticos ou pesquisas feitas no Google: “Os Japoneses gostam de peixe cru, algas, molho de soja, sake, gengibre e líchias. Atrofiam as árvores para elas caberem dentro de casa; enfiam espadas na barriga quando já não conseguem suportar a dor do arrependimento ou da desonra. São um povo estranho…“. De onde surgiu este teu fascínio ou, pelo menos, a decisão de incluir a geografia japonesa neste romance?

É estranho porque neste caso era mesmo importante que fosse assim, até pelo conto. Depois porque tenho um certo fascínio com a cultura oriental, e como queria escrever uma historia marcada pela austeridade e pela crueldade pensei imediatamente no Japão, por ser um sitio onde a honra e a desonra, o arrependimento e a culpa, são fortíssimos. Mas não no sentido cristão ou católico, tem muito mais a ver com aquilo que fazes, com as tuas acções. No Ocidente preocupamo-nos com as acções porque temos um Deus redentor, onde a reza é meio caminho andado para o céu. Numa sociedade com a japonesa as tuas acções têm consequências imediatas, és tu o responsável. Não há esse Deus transcendente e mediador que nos salva. No Japão, se cometeres certos actos não tens salvação, e foi isso que quis mostrar com as personagens japonesas, colocando-as debaixo desse peso enorme.

Para além do Quixote de Cervantes, há também referências cinéfilas: a Méliès mas sobretudo a Bergman. Julgo seres fã deste último, pelo menos do seu “Luz de Inverno”.

Há alguns anos fiz uma sessão intensiva de filmes de Bergman na Cinemateca e fiquei fã. Há um filme sobre um mágico chamado Voegler, um aldrabão, alguém que não acredita na sua própria magia. Precisamente o que acontece ao Henrique, que tem uma herança pesada de avós co a capacidade de levitar. Se tivesse de escolher um cineasta favorito seria o Bergman. Gosto da maneira como ele une forma e história, da tranquilidade que há nos planos e naquele preto e branco lindíssimo. Inclui-o sobretudo por casa do Voegler, daquela questão do que é magia e de que forma esta poderá ser um simulacro ou um engano, mudando a nossa percepção do real.

Para terminar, gostava de colocar lado a lado duas citações. Primeiro esta: “O que me intriga é a razão do teu desejo. Porque é que queres ser mais do que isso que somos: humanos, falhados. Não temos asas, e que mal tem isso?” E também esta: “Rimo-nos durante minutos, até nos chegarem as lágrimas aos olhos e ficarmos com dores de barriga. Ríamo-nos do absurdo, mas também da verdade que se escondia atrás do absurdo, a alucinação colectiva; ríamo-nos porque nos identificámos perfeitamente: dois homens aprisionados numa história banal que, sem sequer o saberem, viviam na ilusão de uma história extraordinária; gente que confundia a realidade com os sonhos, como todos os humanos“. O livro parece contemplar estas duas vertentes: por um lado, mostrar-nos a beleza imperfeita da vida e do homem, a sua finitude, mas por outro enaltecer a sua busca pela superação, mesmo sabendo que a meta está à distância de dias, semanas, meses e, na melhor das hipóteses, anos.

O livro está cheio dessas contradições, o que o torna interessante. Como humanos somos várias coisas, vamos mudando ao longo do tempo, e a busca pelo que está além é algo constante. A nossa tentativa de lidar com a morte de uma forma produtiva pode levar-nos a lugares muitos interessantes, mas também a lugares muito escuros. No final, o narrador compreende que apesar disto ser tudo aquilo que temos, este corpo e esta consciência frágeis, somos únicos. De que, apesar de que tudo não passar de uma grande piada ou anedota divina, a nossa dor surge também como forma de lidar com o facto de ser um milagre estarmos aqui. É uma contradição enorme, mas é a contradição humana fundamental.

 

Foto de capa: Vitorino Coragem

Ler mais:
Sobre a apresentação de “Ensina-me a voar sobre os telhados” na edição de 2018 do Livros a Oeste

 

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