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Entrevista, Perestroika, Deus Me Livro, Trebaruna, João Cerqueira, O Pacto com o Diabo
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Entrevista: João Cerqueira

Por Isabel Daires · Em 14/03/2023

A história recente dos países do Bloco de Leste, marcada por regimes comunistas autoritários e pelas profundas convulsões políticas, económicas e sociais que se seguiram à desagregação da URSS, é reconstituída de forma simultaneamente brilhante e aterradora – e com abundante humor negro – por João Cerqueira em “Perestroika” (Ideia-Fixa, 2022). Nesta entrevista ao Deus Me Livro, o autor, doutorado em História da Arte e já publicado em oito países, conta-nos como os temas da política, da arte, da história e da religião se conjugaram no desenvolvimento desta sua última obra, revelando também um pouco acerca dos seus novos projectos literários.

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Como avalia o contributo do seu doutoramento em História da Arte para a sua produção literária? E será ele mais ou menos significativo do que o proporcionado pelo acompanhamento da actualidade?

Por um lado, a redacção de um texto com 400 páginas, no qual se exige absoluto rigor, ajudou-me a melhorar a qualidade da escrita e a saber arrumar as ideias. A estrutura de uma tese de História da Arte tem semelhanças com a estrutura de um romance: é preciso conectar os diversos elementos da informação díspar para formar um todo coerente; e isto só é possível usando uma linguagem clara e lógica. Por outro lado, acabo sempre por introduzir obras de arte ou estilos de arquitectura nos meus romances. Como escrevi ao mesmo tempo a tese de mestrado sobre as casas de férias de Moledo e “A Tragédia de Fidel Castro” houve uma espécie de osmose entre ambos. Não apenas nos parágrafos longos do romance onde se concatenam raciocínios, como ainda na presença da Revisão Vernacular da Modernidade que algumas casas do romance apresentam. Em “Perestroika”, há a obra de El Greco Cristo a expulsar os vendilhões do Templo, há um pintor chamado Ludwig Kirchner homónimo do pintor alemão e há ainda uma pintura imaginária do julgamento de Cristo por Pilatos. No romance “O Pacto com o Diabo”, que irei publicar em Abril, aparece O Jardim das Delícias de Hieronymus Bosch. E no manuscrito pós-apocalíptico que estou a terminar, o quadro que inspira a personagem principal a matar um tirano é Judith e Holofernes, de Caravaggio. Mas a principal fonte de inspiração para tudo o que escrevo é mesmo a realidade. Além de não haver nenhum romance na Amazon dedicado ao tema, “Perestroika” é inspirado pela deriva totalitária da Rússia de Putin. E o próprio Putin, assim como Trump, estão na origem do personagem Ivan Fiorov: um mafioso sem escrúpulos, milionário, que ascende democraticamente ao poder da Eslávia.

“Perestroika” decorre nesse país fictício chamado Eslávia, claramente inspirado no antigo Bloco de Leste. Qual o contributo dos diferentes países desse bloco para a composição desta ficção?

A principal contribuição veio da Rússia de Putin. Mas foi igualmente importante as imagens que vi na televisão, dos povos de todos os países comunistas a exigirem liberdade e democracia nas ruas, assim como a demolição com picaretas, martelos e às vezes as próprias mãos dos manifestantes do Muro de Berlim. Incluí ainda no livro as descrições dantescas dos orfanatos da Roménia de Ceausescu, onde acorrentavam e prendiam em jaulas crianças e deficientes mentais. As crianças vítimas de pedofilia em Perestroika estão num orfanato semelhante. E o personagem Aliocha – que sofre de paralisia cerebral – vai parar a um local parecido, mesmo depois do fim do regime, quando o pai – o Comissário do Povo Olin – morre. Por último, para recriar com rigor histórico a vida na Eslávia recorri a vários livros sobre o Comunismo, em especial “A Cortina de Ferro” de Anne Applebaum.

Este livro começa por parecer uma crítica às ditaduras comunistas, mas a transição para o capitalismo e para a democracia é desastrosa e desemboca num regime autoritário. Partindo do princípio de que a democracia é preferível às alternativas experimentadas até hoje, o que acredita que pode ser feito para defendê-la e promovê-la?

A invasão da Ucrânia prova, infelizmente, aquilo que Niall Ferguson defende no livro “Civilização: o Ocidente e os Outros”. Perante aquela barbárie, fora do Ocidente quem está do lado da Ucrânia? Quem defende a democracia e o direito internacional? À excepção do Japão, da Coreia do Sul e de Israel, o resto do mundo pactua com a Rússia e admira a China. Portanto, quem está realmente a lutar pela democracia na Europa é a Ucrânia, com o apoio da NATO. Porque, com todos os seus defeitos, erros, e até a besta do Trump, os EUA são a única garantia de existência de liberdade na Europa. Sem eles, ou Hitler, ou Estaline ou agora a China engoliam-nos. Infelizmente, a cultura democrática não pode ser exportada e parece haver povos, culturas e religiões que a dispensam bem, desde que haja prosperidade. Os russos e os chineses são um bom exemplo.

Uma personagem – o Comissário do Povo Olin – pensa, a certa altura, que o Partido Comunista deveria ter procurado pontos de contacto com o cristianismo e utilizado a sua força, em vez de ter banido a religião. Seria concebível que as altas instâncias cristãs se aliassem ao comunismo? Nesse caso, como seria o mundo actual?

Vejamos o caso da Rússia. Putin e a sua invasão da Ucrânia têm a bênção da Igreja Ortodoxa Russa. O Comissário do Povo Olin percebeu que se uma força tão poderosa com a religião cristã se aliasse ao Comunismo, o regime não seria facilmente derrubado pela Perestroika. Ele não conseguiu fazer essa aliança. Mas Putin conseguiu. O ditador russo aproximou-se daqueles fanáticos barbudos, deu-lhes poder e agora eles falam em guerra santa, como se fosse uma cruzada contra infiéis. Assim, juntamente com a invocação do nacionalismo, Putin garante ainda mais apoio popular. No mundo não ocidental, como na Índia com o nacionalismo hindu ou na China com a recuperação do confucionismo, os governos perceberam que as tradições religiosas ou filosóficas podem ajudá-los a consolidar o poder. Há quem defenda que uma das causas do declínio do Ocidente é esse afastamento da religião, substituída por outros cultos: o veganismo, o ambientalismo radical, o wokismo, etc.

Quando a personagem do dissidente Leónidas se evade para a Áustria, surpreende-se com o requinte que encontra até nos objectos utilitários e pergunta a si próprio se “a beleza necessita de liberdade”. Qual seria a sua resposta?

Quando estive em Cuba, ouvi uma vez alguém dizer, «tudo o que vem da Rússia é mau», a propósito de umas botas horríveis que calçava. Como conclui a personagem Sílvia Lenka, historiadora da arte e apoiante do regime, é difícil criar algo belo quando não existe liberdade. Penso que a História da Arte, com algumas excepções como a arte sacra sujeita ao crivo da Inquisição, demonstra isso mesmo. Teria a escultura e a arquitectura da Grécia Antiga sido igual sem a democracia ateniense? E que dizer das cidades italianas do Renascimento, provavelmente os lugares onde havia mais liberdade naquele tempo. Sílvia acaba pois por aceitar que os pintores do Renascimento tiveram mais liberdade criativa que os pintores do seu país. Afinal, Hitler e Estaline liquidaram o modernismo na Alemanha e na URSS para imporem os seus valores estéticos. Em suma, sem liberdade o ser humano é uma criatura diminuída.

Logo no início e pouco antes do final da obra, são descritas as inaugurações de duas exposições no mesmo edifício público, servindo cada uma para celebrar o regime então em vigor. Como avalia a relação entre o poder político e a arte?

Na Alemanha, Hitler serviu-se da arte tradicional, da arquitectura de Albert Speer e dos documentários de Leni Riefenstahl para propagandear o regime nazi. Na União Soviética, Estaline impôs o Realismo Socialista, facilmente aceite pelo povo, com o mesmo objectivo. Na Itália fascista, Mussolini soube aproveitar o contributo de Marinetti e dos modernistas. E, em Portugal, durante o Estado Novo, tivemos a Política do Espírito de António Ferro para educar o bom gosto do povo, associando o regime ao passado glorioso da reconquista cristã e dos Descobrimentos. Parece-me que Ferro fez um trabalho melhor do que os seus congéneres das outras ditaduras e deixou uma herança importante como a Cinemateca. No Ocidente isso já acabou há muito. Agora, pelo contrário, não há artista contemporâneo que não critique o nacionalismo. Ou, então, defendem causas politicamente correctas. Os artistas de regime de hoje, são os escultores aos quais as Câmaras atribuem sucessivas encomendas de obras públicas para decorar rotundas ou praças. São uma pálida – e cómica – remanescência dessa relação entre o poder político das ditaduras dos anos 30 do século XX e a arte.

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Todo o livro é percorrido por laivos de humor negro, que por vezes até surge no discurso das personagens sem que estas tenham noção dele. Até que ponto é fácil para si produzir este efeito? Considera-o uma característica da sua escrita? Será hoje o impacto político do humor mais ou menos forte do que no passado?

O humor, o nonsense e a tolice fazem parte da minha personalidade. Ter visto, quando adolescente, os Monty Python e os filmes de Woody Allen, e ter lido as crónicas de Eça de Queirós, reforçou esse traço inato. Não tenho grande jeito para contar anedotas, mas na minha cabeça revoluteiam constantemente pensamentos cómicos ou absurdos que obviamente não conto a ninguém, senão já me teriam internado. É a minha droga natural para andar bem disposto e ser optimista em relação à vida. Rio-me de toda a gente, sobretudo dos que se julgam muito importantes. O que não é difícil, pois ser humano é ser ridículo – e o problema começa logo nos sapatos. Como tal, quando comecei a escrever essa tendência impôs-se. Não consigo escrever sem humor. Há escritores que dizem que a escrita os faz sofrer – tadinhos -, a mim faz-me geralmente rir. Contudo, não sou um comediante e o meu humor é mais vezes negro do que cor de rosa. Um crítico inglês disse que a genialidade de Shakespeare consiste na passagem súbita da comédia para a tragédia, apanhando desprevenido o leitor. Ora é isso mesmo que eu tento fazer. No fim de algumas páginas humorísticas o leitor vai encontrar um monstro. Em “Perestroika”, porém, é ao contrário. Depois da repressão, dos campos de concentração e do abuso de crianças, entra em cena Monsieur Foucault, o cônsul francês, que começa a fazer filmes pornográficos com as mulheres eslavas e inventa as teorias mais descabeladas para o justificar como um ataque ao Capitalismo. No fim, o seu filme “A Perestroika na Cama” transforma-se numa obra de arte contemporânea. Como já referi noutra entrevista, na literatura portuguesa o humor praticamente despareceu depois do Neorrealismo. A literatura portuguesa é cinzenta. Existem bons humoristas em Portugal mas, à excepção de Tiago Dores e José Diogo Quintela, são brandos com o actual poder político.

Um dos seus livros anteriores, “A Tragédia de Fidel Castro”, foi adaptado ao teatro nos EUA. Existe alguma perspectiva de adaptação teatral ou audiovisual de “Perestroika”?

Em Portugal, nem sequer sou referido nos principais jornais e revistas de literatura, quanto mais adaptarem o meu trabalho. Modéstia à parte, acredito mesmo que “Perestroika” tem características dramáticas e de ritmo narrativo para uma adaptação ao teatro ou ao cinema. Mas, num meio cultural dominado por pessoas que pensam que o Comunismo foi uma coisa boa que correu mal, nem que alguém financiasse o projecto com milhões lhe pegariam. Ainda que pareça ridículo – agora é a minha vez -, sempre que me entrevistarem farei saber que, apesar dos prémios e de estar publicado em oito países – e aproveito para anunciar que a Arkbound Foundation vai patrocinar a edição de Perestroika em Inglaterra -, os media ignoram-me. A informação que há oito anos lhes mando vai sempre para o lixo. Eles chamam-lhe opções editoriais. Eu chamo-lhe censura. O lápis azul do Estado Novo tem agora a cor do politicamente correcto.

O que pode adiantar acerca dos seus projectos literários futuros?

Vou publicar, em Abril, o romance “O Pacto com o Diabo”. Pretende ser uma homenagem à literatura portuguesa e uma sátira à vulgaridade actual. Um tipo sem talento faz um pacto diabólico e, como resultado, vai escrever “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “Aparição” e “Um Deus Passeando na Brisa da Tarde”. Porém, ao mesmo tempo, uma prostituta a quem recorrera obtém ainda mais sucesso com “As Memórias de Uma Puta”. O livro é uma comédia destinada a leitores cultos. Este era um manuscrito que não pensava publicar este ano. Contudo, depois de ter concorrido a um prémio literário, recebi uma chamada de uma dos membros do júri, a Carolina Sousa. Ela tinha gostado muito da história e queria publicá-la na sua nova editora, a Trebaruna. Não resisti ao convite.

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Isabel Daires

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