Em busca de memórias que não viveu, o narrador de “O Avesso da Pele” (Companhia das Letras, 2021) vasculha o apartamento do seu falecido pai e encontra os vestígios do seu passado. Pedro decide então montar um elaborado “quebra-cabeça sentimental”, recuperando e reinterpretando as experiências do seu progenitor, ligando-as à sua própria identidade. O resultado deste delicado exercício narrativo é uma história comovente, em que a “verdade inventada” se cruza com a realidade de um Brasil preconceituoso e racista. “O Avesso da Pele” é o terceiro romance do escritor brasileiro Jeferson Tenório, a quem colocámos algumas questões.
Em “O Avesso da Pele”, é evidente o fascínio do personagem principal por autores como Dostoiévski, Cortázar, Kafka, entre outros. Recorda-se da primeira obra de literatura estrangeira que leu?
Não fui um bom leitor na infância, nem na adolescência. Os livros naquela época estavam muito distantes de mim. Comecei a conhecer os clássicos estrangeiros já na vida adulto. O primeiro deles foi “Dom Quixote”. Tive dificuldade em ler devido à linguagem, mas sabia que havia algo importante naquela história sobre sonhos, ilusões e loucura.
“O Avesso da Pele” narra as difíceis circunstâncias de um homem negro em Porto Alegre. Consegue entender por que é que o preconceito de cor de pele ainda é uma realidade no Brasil contemporâneo e, mais especificamente, numa cidade moderna e cosmopolita como Porto Alegre?
Não acho que Porto Alegre seja uma cidade moderna e cosmopolita. Ainda me parece uma cidade bastante provinciana num certo sentido, arraigada a ideologias conservadoras. Na verdade, o Brasil é conservador. Sempre foi, de modo geral. A ascensão de uma extrema direita no Brasil era uma questão de tempo. O que estamos sofrendo hoje no país é o resultado de dois eventos históricos mal resolvidos: a escravidão e a ditadura. Enquanto não resolvermos essas questões o racismo e o preconceito seguirão.
Uma das passagens mais marcantes do livro é a confissão da tia de Pedro: “A gente se acostuma com tudo”. Num contexto de discriminação racial, existe alguma alternativa ao estoicismo, ou será que os negros estão condenados a “inventar estratégias de sobrevivência”?
Nem uma coisa nem outra. Não há resignação na luta contra o racismo, nem tampouco estamos condenados a inventar estratégias. Creio que a resistência tem a ver a produção criativa de modos de viver dentro de uma sociedade opressora. Isto significa dizer que prefiro pensar numa postura “ogúnica”, do orixá Ogum, aquele que forja as próprias armas. Assim, forjar os próprios instrumentos não me parece uma condenação, mas um exercício de criatividade. Em “O Avesso da Pele” proponho modos de recuperação da subjectividade solapada pelo racismo e pela violência, mas sem com isso reduzir a trajectória de personagens negros a estoicismo ou condenação.
Qual o papel que a educação/ensino pode desempenhar na vida de um jovem negro de classe baixa?
Embora a questão de classe seja um factor determinante, não parece preciso falar em negros de classe baixa, pois as estatísticas demonstram que grande parte das famílias negras no brasil são pobres. E mesmo quando estes ganham uma ascensão econômica o racismo não dá trégua. Neste sentido precisamos de uma educação inclusiva, que proponha reflexões e estratégias de combate às desigualdades sociais.
Enquanto professor de literatura, partilha, de alguma forma, o desencanto de Henrique quanto ao seu trabalho? Considera que a sua obra são as suas aulas, os seus alunos, ou os seus livros?
O personagem Henrique representa um arquétipo de Dom Quixote. Henrique tem uma crença nos livros, na literatura, que faz com que ele acredite até o fim que possam mudar o mundo. Enquanto escritor, não tenho essa crença tão pungente. Não acredito que os livros possam tanto. Neste sentido, me distancio de Henrique. Exercer a docência não pode ser tratado como sacerdócio ou através de iniciativas individuais. Precisamos de um plano governamental para a educação. O desencanto de Henrique com o ensino tem a ver com a desconstrução da ilusão de que os livros e a literatura podem tudo sozinhas.
“O Avesso da Pele” está a ser adaptado ao cinema. Está (ou estará), de algum modo, envolvido no processo criativo do filme?
Devido a pandemia a adaptação está ainda numa pré-produção. Talvez haja algum pedido de consultoria da produção no processo criativo. Seria um prazer poder contribuir de alguma maneira.
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