Nascida no Porto, Isabel Rio Novo é doutorada em Literatura Comparada e lecciona Escrita Criativa, bem como outras disciplinas no âmbito das artes. Além de textos académicos nessas áreas, publicou diversas obras de ficção que se têm distinguido, tais como a novela “A Caridade” (2005, Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes) e os romances “Rio do Esquecimento” (2016, finalista do Prémio LeYa e semifinalista do Prémio Oceanos), “A Febre das Almas Sensíveis” (2018, finalista do Prémio LeYa) e “Rua de Paris em Dia de Chuva” (2020, finalista do Prémio Europeu de Literatura e do Prémio de Narrativa do PEN Clube). O seu último livro, “Madalena” (Dom Quixote, 2022), vencedor da edição de 2016 do Prémio Literário João Gaspar Simões e objecto desta entrevista, é uma reflexão sobre a forma como a nossa identidade individual pode ser afectada, não só pela doença, mas também pelas histórias daqueles que viveram antes de nós.
Em Madalena, a narradora luta contra um cancro e ressente-se da maneira como passa a ser recebida, “em todos os lugares onde antes era uma pessoa e agora era uma pessoa com cancro”. Uma vez que não fez segredo do facto de ter tido uma doença oncológica, é correcto acreditar que as suas experiências pessoais inspiraram as desta protagonista?
O romancista mergulha sempre, mais ou menos inconscientemente, no seu mundo. Não poderia nem quereria negar que a vivência do durante e do após da doença foi das experiências mais marcantes da minha vida, e qualquer leitor compreenderá que a ponha em livro ou em livros. Mas inspirei-me igualmente nas muitas pessoas perto de mim que passaram pela doença, e com resultados os mais diversos. Seja como for, “Madalena” não é um romance mais autobiográfico do que “Rua de Paris em Dia de Chuva” ou até, em boa medida, “Rio do Esquecimento”.
O facto de nunca conhecermos o nome original da narradora resulta mais do seu desejo de manter até ao limite o suspense acerca do quão autobiográfica é a obra ou, em vez disso, de um interesse em facilitar processos de identificação por parte dos leitores? Ou existe uma outra razão?
Bem, da minha resposta anterior (e nem vou falar do desenlace da história, porque não quero ser spoiler, como dizem as minhas filhas) se depreende que o romance não é autobiográfico. E acho que as páginas finais explicam ou, melhor dizendo, fazem sentir bem ao leitor porque é que a personagem da narradora protagonista não é nomeada.
A obra tem duas protagonistas: a narradora, no presente; e a sua bisavó, Madalena, num passado desvendado através de fotografias, cartas e outros documentos antigos. Partilha com a narradora a atracção por esses testemunhos de tempos idos? Serão também uma fonte de inspiração?
Sem dúvida. Todos os vestígios do passado me atraem muito, sobretudo locais, cartas e retratos. E são certamente uma fonte de inspiração. Creio que tenho um certo sentimento do passado, a capacidade de encontrar a brecha por onde a imaginação consegue iludir as circunstâncias do presente para chegar a uma época outra, não a que foi, naturalmente, mas a que construo na ficção. E essa brecha encontro-a muitas vezes nesses testemunhos.
Existe uma certa dose de escapismo na maneira como a narradora se debruça sobre as vidas dos bisavós, como se reconstruísse um romance. Perante a profusão de publicações de auto-ajuda, como aquelas que ela vai encontrando em toda a parte, terá a literatura sido relegada para segundo plano?
Na realidade à nossa volta? Não tenho a mínima dúvida. E, no entanto, há páginas de Tolstoi, ou de Agustina, ou de Thomas Mann, ou de Camilo, ou versos de Camões, que me ensinam mais sobre vida e morte do que qualquer livro de auto-ajuda (sim, já li um ou dois para saber do que falo).
O facto de as figuras do passado parecerem à narradora mais próximas e reais do que aquelas que encontra no quotidiano resultará mais de um real défice de empatia de quem a rodeia, ou da maior facilidade com que ela pode projectar expectativas em quem já não está presente?
Um défice de empatia de quem a rodeia e dela própria. Um dos desafios desta história foi para mim criar uma protagonista que não fosse naturalmente ou obviamente simpática, mas que, mesmo assim, contra vontade dele às vezes, levasse o leitor a identificar-se com ela e a criar empatia. Ela não é alguém que se relacione facilmente com as pessoas à sua volta, define-se frequentemente pela negativa (os gestos que não faz, as coisas que tem vontade de dizer, mas não diz…), e encontra nessas figuras distantes pessoas a quem se consegue ligar intimamente. “Madalena”, já alguém o disse, é a história de um encontro à distância entre duas mulheres.
Podemos conceber Álvaro Amândio e Madalena Brízida, os bisavós da narradora, como vítimas do seu tempo, até certo ponto. Teriam sido mais felizes noutra época? Como imagina que as suas personalidades habitariam o presente? Como se relacionariam, caso se cruzassem?
Nem consigo imaginá-los fora do tempo que é o deles, e que é o que eu (re)construí neste universo de ficção, que lhes impõe constrangimentos e dificuldades que certamente noutro tempo, como hoje, não teriam. Mas teriam outros, não é? Porque a natureza humana é sempre a mesma, através das gerações.
A dedicatória desta obra inclui os seus avós, as suas filhas e o seu marido. Será essa uma maneira de ligar passado, presente e futuro?
É uma maneira de ligar pessoas que amo e amei em diferentes tempos, como diz, e de as ligar ao livro que escrevi. O romance faz parte da minha vida, mas não é a minha vida; eles, sim.
Muitos jovens são acusados de viverem centrados no presente, sem planear o futuro. Aqui, encontramos uma mulher jovem que sente que adiou demasiado um futuro que talvez já não tenha. Como alcançar o equilíbrio?
A pergunta para um milhão de dólares, como se costuma dizer. De repente, vêm-me muitas citações à cabeça, muitas máximas, muitos versos soltos que o exprimiriam melhor do que eu. Mas não sou muito inclinada ao name dropping, por isso sugiro: viver no dia presente, sem nos querermos aliviar da memória do dia passado, e com esperança de que haja dia futuro.
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