Helena Carvalhão Buescu tem um daqueles currículos que, facilmente, poderiam servir para editar uma versão das páginas amarelas em formato de bolso. Com áreas de interesse que abrangem a Literatura Comparada, a Literatura Portuguesa e a Literatura-Mundo Comparada, colabora regularmente, como docente ou conferencista, com Universidades da Europa, Brasil, EUA e China, e tem sido membro de direcções executivas de instituições como a International Comparative Literature Association (ICLA), o Consortium of Humanities Centers and Institutes (CHCI), o Institute of World Literature (IWL) ou a European Science Foundation (ESF). Entre os seus vários livros publicados estão títulos como “Chiaroscuro. Modernidade e Literatura” (Porto, Campo das Letras, 2001), “Cristalizações. Fronteiras da Modernidade” (Lisboa, Relógio d’Água, 2005), “O Grande Terramoto de Lisboa. Ficar Diferente” (Gradiva, 2005), “Emendar a Morte. Pactos e(m) Literatura” (2008), “Experiência do Incomum e Boa Vizinhança” (2013) ou, em 2019, “O Poeta na Cidade. A Literatura Portuguesa na História”, vencedor do Grande Prémio de Ensaio da APE.
No âmbito do Centro de Estudos Comparatistas, que fundou e dirigiu durante 15 anos, foi a coordenadora do projecto “Comparative World Literature – Perspectives in Portuguese”, que contou com o apoio de várias instituições nacionais e internacionais e resultou na publicação da antologia “Literatura-Mundo Comparada, Perspectivas em Português” (Tinta da China, 2018 a 2020), uma edição em seis volumes que reúne textos de todo o mundo e que surge dividida em três partes, cada uma delas composta por dois volumes.
Em Mundos em Português faz-se uma leitura ampla de grande parte da literatura escrita originalmente em português, com textos de mais de cem escritores onde há nomes como os de Luís de Camões, Fernando Pessoa, Mia Couto, Maria Teresa Horta, José Eduardo Agualusa, Machado de Assis, Herberto Helder, Paulina Chiziane, Nelson Rodrigues, Eça de Queirós, Clarice Lispector, José Luandino Vieira, Germano Almeida ou Sophia de Mello Breyner Andresen; O Mundo Lido: Europa abarca tradições literárias europeias diversas que contribuíram para os cânones mundiais da literatura, incluindo autores como Dostoiévski, Proust, Joyce, Cervantes, Woolf, Aristóteles, Yeats, Shakespeare, Beauvoir, Baudelaire, Beckett, Pirandello, Tolstói, Shelley, Kafka, Goethe ou Szymborska e textos fundadores como a Bíblia ou a Ilíada, incluindo várias traduções até agora inéditas; a fechar a antologia está Pelo Tejo Vai-se para o Mundo, que abarca tradições literárias além da Europa e dos países de língua portuguesa, incluindo autores como Faulkner, Lao Tse, Ferdowsi, Equiano, Khoury, Vargas Llosa ou Mabanckou, além de tradições orais e mitos fundacionais de variadas culturas, a grande maioria das quais pela primeira vez disponível em tradução portuguesa, numa viagem da antiguidade mais remota à era contemporânea.
Um recolha que representa um marco na História da Literatura de Portugal e que conta com o alto patrocínio do Presidente da República e parceiros institucionais como a Sociedade Portuguesa de Autores, a Fundação Macau, a Comissão Geral da UNESCO em Portugal, o Instituto Camões, o INIC ou a CPLP, bem como o financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia e o contributo da União de Escritores Angolanos.
De modo a sabermos mais sobre esta enorme viagem, que vai dos textos fundadores ao ano 2000 – e parece estabelecer-se como um lugar de encontro -, colocámos algumas questões a Helena Buescu, responsável pela coordenação científica geral desta antologia de grande fôlego.
A haver uma edição revista, intitulada Literatura-Comparada para Principiantes, como poderia ser condensada a introdução a esta antologia num parágrafo?
A literatura comparada permite enquadrar a literatura nacional (no caso, a literatura portuguesa) no quadro de um amplo oceano de ligações, umas vezes mais directas (com as literaturas de língua portuguesa, ou com algumas literaturas europeias), outras mais indirectas e inesperadas. Em todo o caso, ficamos com uma visão mais complexa e plástica de como a literatura portuguesa evolui e se desenvolve com outras, e de como o que existe de “português” na literatura nacional é feito do confronto, paralelismo, diferença ou contraste com o que está “fora dela”.
No primeiro volume, descobrimos estas palavras de Claudio Magris: “As antologias, como as enciclopédias, estiveram entre as minhas primeiras paixões de leitor, desde quando era rapaz, e – como todas as paixões, para mim nunca arquiváveis – continuam a estar. Naquelas páginas encontrava as coisas, os rostos, as vozes, os sentimentos, as cores, as histórias do mundo e parecia-me que o seu autor era a própria realidade, o coro de quem a vive, a constrói, a sofre ou a ama”. Houve muito sofrimento e amor na construção desta Antologia?
Houve sobretudo muita alegria e entusiasmo, provenientes do amor pelo literário. As equipas (diferentes no caso de cada uma das Partes) por mim coordenadas trabalharam sempre com a mesma ideia comum: a de que conheceremos sempre melhor a literatura portuguesa se pudermos ler o vasto mundo de traduções que com ela intimamente se liga. É uma paixão podermos ler textos escritos há 2000 anos, ou mesmo há 4000 anos, em tradições tão diferentes, e sentirmos que eles continuam a falar connosco e com os textos que hoje lemos. Uma antologia é também um exercício de humildade, ao reconhecer quanto devemos a tantos, e quanto esses contribuíram para o que hoje somos.
Há um olhar com visão panorâmica e à escala global que parece querer incitar ao estudo, mas também à descoberta da literatura através das muitas obras aqui referenciadas. Pode dizer-se que se poderá ler esta Antologia entre um interesse mais académico e outro mais descomprometido, como quem vai ouvindo uma playlist e das canções vai chegando aos álbuns?
Absolutamente. Há um mundo de nós, leitores, tão desconhecido nestes 6 volumes da Antologia – ou melhor, há tantos mundo tão desconhecidos de nós, que a sua descoberta só pode ser um incentivo e uma iluminação. Claro que uma antologia não substitui os livros ou a integralidade dos textos que assinala. Mas quantos não serão levados a ler integralmente uma tragédia grega porque leram um excerto cuidadosamente escolhido dela nesta Antologia. Quantos não ficaram apaixonados pela poesia T’ang chinesa, com a sua maravilhosa e simples imagética? Quantos não descobrirão num poema egípcio, escrito milénios antes de Cristo, o reverso de quanto um exilado pode sofrer, apenas poer ter ouvido o que não deveria ter ouvido? Quantos não virão a ler Anna Karenina, por causa dos últimos capítulo que do livro se reproduzem? Por cada leitor da Antologia que seja levado o livro ou o autor que descobriu – todo o trabalho de 10 anos terá valido a pena.
Como foi coordenar e desenhar uma obra desta dimensão, que abrange o mundo literário quase por inteiro? De que forma foram escolhidos os temas, os autores e se chegou a seis volumes divididos em três grandes temas? Houve escolhas difíceis e autores deixados de fora?
Foi, como disse, uma enorme alegria e uma inesperada descoberta. Por isso falei também de um exercício de humildade, porque todos nós, afinal, fomos (e somos) confrontados com tudo quanto desconhecíamos – e ainda a consciência de que isso não será senão a ponto do icebergue. Os temas, os autores, a estrutura da obra foram objecto de amplas discussões, logo no início, no âmbito da equipa alargada (sem a qual um tal projecto teria sido impossível de realizar, é claro). Tínhamos de trazer ideias, discuti-las, perceber o que fazia mais sentido e o que não fazia sentido – dou um exemplo: as categorias temáticas são as mesmas nas Partes I e II, com excepção de uma, que faz sentido nos “Mundos em português”e não nos mundo europeu: a categoria “Língua e variação”. Um outro exemplo: na Parte III (vols. 5 e 6), em que começamos com textos de todo o mundo desde a tradição mesopotâmica (ou seja, do terceiro milénio AC), compreendemos que se impunha ordenar cronologicamente e culturalmente os textos até ao século XIX, até porque o leitor desconhece a maior parte dessas tradições e o seu lugar cultural e simbólico. Mas voltámos aos temas nos séculos XIX e XX, porque voltava a fazer sentido num mundo em que as diferenças culturais acabavam por se confrontar com problemas e temas cada vez mais associados uns aos outros. Escolhas? Muitas, muitas, muitas. Foi muito mais o que tivemos de deixar de fora do que o que pudemos incluir. Mas isso acontece sempre, em qualquer trabalho. Eu costumo dizer aos meus doutorandos que o exercício mais difícil que aprendemos com uma tese (mas isto é válido também aqui) é o de perceber o que “faz sentido” naquela história, e sem o que ela se desmorona. E, por isso, o de perceber o que temos de deixar de fora. Lembro sempre um poema de Kavafis, que fala da criação poética (mas, no fundo, de qualquer criação) como uma necessidade de um navio “alijar carga” para poder entrar no porto. Não podemos trazer connosco todos os tesouros. Podemos aprender com eles e depois, se tivermos sorte, fazermos outras coisas com os tesouros que não couberam naquele projecto.
Um projecto e uma edição desta natureza ficam, normalmente, pelas elites políticas e intelectuais. Sendo esta uma literatura-mundo, de que forma poderá ser servida ao leitor como uma espécie de romance matrioska, onde está presente um sentido quase infinito de sede de leitura?
O meu objectivo, o objectivo das equipas que comigo trabalharam, foi sempre o de imaginar que um leitor culto e interessado, sem objectivo académico, pode pegar nos volumes e por eles ficar encantado. É claro que isto passa por mecanismos também comerciais, que de nós não dependem – como por exemplo os livros serem conhecidos, os media falarem deles, ou encontrarem lugar nas estantes das livrarias em que o leitor-passeante os possa folhear. Sabemos todos o que isto significa. Não são livros da “espuma dos dias”, que possam ser um sucesso retumbante durante 2 meses. Mas livros de leitura lenta, de algo que pode ser visitado e depois revisitado. Como um monumento a que podemos voltar, sempre com surpresas a descobrir. Mas também foi nosso objectivo pensar que este tipo de antologias possam servir (como servem na maior parte de outros países onde elas existem) para que os estudantes sobretudo universitários (mas não só) tenham forma de abrir horizontes, de ler o que de outra forma não poderiam ler na sua especialização. Vivemos num mundo hiper-especializado. Uma forma de dar um passo atrás, e de voltarmos a pensar no valor daquilo a que em tempos se chamou (e era nobre fazê-lo) “cultura geral”, pode ser, espero, um dos objectivos mais conseguidos desta antologia. Este trabalho foi eito por muitos, mas para muitos mais. Esperamos todos que esses para quem foi feito o possam descobrir, e continuar a ir descobrindo.
Fotos: Raquel Wise
Sem Comentários