Ao fim de uma década sem publicar, Francisco Camacho – que foi jornalista durante 20 anos e actualmente é editor do Grupo LeYa na área de não-ficção – regressa à criação literária com “O Monte do Silêncio” (ler crítica), um romance que combina um bom mistério policial com uma deliciosa sátira aos hábitos de uma certa elite económica portuguesa, muito ciosa das aparências.
Entre partilha de fontes de inspiração e críticas ao funcionamento do nosso sistema judiciário, deixamos o testemunho de um autor que encontra na observação da realidade as melhores ideias para escrever romances, mas que precisa de se “apaixonar verdadeiramente por uma história para construir um romance a partir dela”.
O seu livro mais recente, “O Monte do Silêncio”, combina uma intriga policial com uma sátira a uma certa classe endinheirada que vive para as aparências e cujos negócios nem sempre são limpos. Como se desenvolveu a escrita desta obra? O que pode partilhar acerca das suas fontes de inspiração para a composição das personagens e das situações em que se envolvem?
A minha principal fonte de inspiração foi a realidade, que todos os dias percepcionamos nas notícias, de um certo país onde existem desigualdades sociais gritantes e onde a descrença na Justiça começa a atingir níveis preocupantes, graças à grande quantidade de casos de corrupção que se arrastam há anos nos meandros da justiça (que, por sua vez, são incompreensíveis para o comum dos mortais) e que trazem consigo um sentimento de impunidade. Isto é mau para todos e, sobretudo, para as novas gerações, que olham à volta e vêem uma sociedade onde a esperteza e o compadrio aparentam compensar mais do que actuar dentro das regras. E é péssimo, desde logo, para a democracia. É um terreno fértil para a demagogia e para o populismo. O meu protagonista é alguém que, a partir dos seus próprios problemas, a partir da sua bolha, assiste de uma forma passiva, sem ilusões, a um mundo que se vai desmoronando.
O que o conduziu do jornalismo à criação literária? De que modo as suas experiências profissionais, enquanto jornalista, bem como na área editorial, influenciam o que hoje escreve e a forma como o faz?
Não creio que a minha experiência como editor de livros me tenha influenciado minimamente na escrita deste ou doutro livro; se o fez, não me dei conta Já a experiência como jornalista ao longo de vinte anos é natural que me tenha influenciado neste livro em concreto, porque a matéria-prima do trabalho de um jornalista é a realidade e a sua observação – e é na observação atenta da realidade que vamos encontrar as melhores ideias para escrever romances. Por outro lado, o jornalismo leva-nos a exercitar um poder de síntese na escrita que me agrada na ficção. Gosto de uma certa objectividade, frieza e economia de palavras e tento praticar esse tipo de registo nos meus romances. Por outro lado, quando olho para trás, não me vejo tanto como um jornalista que, um dia, começou a escrever ficção. Vejo-me mais como alguém que foi para o jornalismo porque se tratava de uma profissão em que se era pago para contar histórias. Mas acho que, lá no fundo, sempre quis ser ficcionista.
Quais as influências literárias que gostaria de destacar?
As minhas influências literárias são sobretudo anglo-saxónicas, do Graham Green, Somerset Maugham e Ernest Hemingway ao Julian Barnes, Ian McEwan, Paul Auster, Bret Easton Ellis, entre tantos e tantos outros. Mas costumo dizer que foram a Enid Blyton e a Agatha Christie que me ensinaram a escrever. Li dezenas de livros delas ao longo da minha infância e no início da adolescência. Foi nessa altura que começou a tomar forma não apenas a minha vontade de contar histórias, mas também uma certa obsessão com a escrita propriamente dita, com a sua mecânica, com a escolha certa das palavras, com o ritmo mais ou menos acelerado que lhes podemos incutir, com a sua musicalidade, com uma certa estética que vamos criando ao usá-las de certo modo, com a plasticidade incrível que as palavras e as frases proporcionam a quem as escreve e que, nesse sentido, não será muito diferente, arrisco dizer, de pintar um quadro ou criar uma música, embora escrever, do meu ponto de vista, seja menos instintivo e mais cerebral…
Diogo, protagonista deste livro, é forçado pelo seu psiquiatra a redigir um diário, acabando por encontrar “libertação e verdade” nesse exercício. Também se dedica à escrita diarística? Acredita na capacidade desta para nos ajudar a ordenar o mundo?
Acredito, muito embora nunca me tenha dado ao trabalho de escrever um diário. Mas parece-me indiscutível que escrever ajuda a pensar e a dar sentido ao que nos rodeia. Obriga-nos a estar em contacto connosco próprios e, nesse sentido, a compreender o mundo à nossa volta com um grau de profundidade que o pensamento abstrato, sem uma manifestação escrita, não consegue proporcionar. É por isso que os psicólogos, ou mesmo alguns psiquiatras, aconselham muitas vezes os pacientes a escrever, tal como, aliás, acontece em ”O Monte do Silêncio”. Mas a ideia de pôr o meu protagonista a redigir um diário “terapêutico” partiu apenas da minha necessidade, enquanto autor, de justificar a razão pela qual o romance era escrito na primeira pessoa – e eu queria escrevê-lo dessa modo, dessa perspectiva muito pessoal. Alguém como o Diogo, ao qual quis atribuir uma certa dose de inércia, precisava de uma justificação credível para se pôr a escrever aquela história, e essa justificação é a recomendação do seu médico. Isto é, o diário entra no livro em nome da coerência, uma qualidade sem a qual um bom romance não sobrevive.
Faz uma reconstituição muito viva da Lisboa dos anos 80, integrando, por exemplo, uma série de referências musicais. Até que ponto são autobiográficos os gostos musicais de Diogo?
São totalmente autobiográficos. A minha maior paixão é a música, que está presente em todos os meus romances, embora n’ “O Monte do Silêncio” tenha sido bem mais comedido a manifestá-la do que fui no Niassa ou n’A Última Canção da Noite.
“O Monte do Silêncio” parece um excelente ponto de partida para um filme ou uma série televisiva. Agradar-lhe-ia assistir a uma adaptação audiovisual do seu texto?
Claro. Muitas pessoas que já leram “O Monte do Silêncio” me põem essa questão, o que me parece um bom sinal. Fico contente quando me dizem isso porque, de facto, há uma componente visual e cinematográfica no livro que é muito vincada. Trabalhei bastante essa vertente da narrativa que, juntamente com uma certa imprevisibilidade do enredo (ou assim espero) e o ritmo acelerado, foram os aspectos “técnicos” em que mais me empenhei. Confesso que, quando entreguei o original à Dom Quixote, não estava certo de que iriam resultar assim tão bem. Precisei do excelente feedback que tenho tido dos leitores para me convencer de que a “estratégia” foi acertada.
Pode adiantar-nos algo acerca dos seus próximos projetos literários?
Não sou um autor ansioso, que quer publicar todos os anos. Entre a publicação dos meus dois primeiros livros passaram-se seis anos, e desde o anterior até este, outros dez. Estou ainda a saborear o facto de ter conseguido publicar um livro depois de uma década em branco… Mas, sim, há uma história em particular que ando a namorar como eventual ponto de partida para um próximo romance. Só que namorar não basta. Preciso de me apaixonar verdadeiramente por uma história para construir um romance a partir dela. Ainda não tenho a certeza se é esta a história que quero escrever, mas, por enquanto, dou-me por satisfeito por estar a pensar nesta em concreto e não em cinco hipóteses possíveis, como acontecia até há bem pouco tempo. É assim que tudo começa.
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