Como reagiria se lhe dissessem que, no lugar da aspirina, do Prozac ou daquele chá natural que uma amiga lhe aconselhou mas cujas propriedades medicinais lhe passaram ao lado, poderia curar várias das suas maleitas trocando as drogas por grandes e pequenos romances?
Ella Berthoud e Susan Elderkin conheceram-se quando eram estudantes, ganhando o hábito de prescrever mutuamente romances sempre que cada uma delas atravessava um período conturbado. Apesar de terem seguido carreiras muito diferentes – Ella seguiu Bellas-Artes e tornou-se pintora e professora enquanto Susan abraçou a vida de romancista e dá aulas de escrita criativa – montaram, em 2008, um serviço de biblioterapia na londrina School of Life e, desde então, têm vindo a receitar livros – virtualmente e presencialmente – a pacientes de todo o mundo. Aproveitámos a ida ao LeV para conversarmos com Ella Berthoud sobre biblioterapia, a alma literária e a regra das 50 páginas. E, claro, sobre “Remédios Literários” (Quetzal, 2016).
A Biblioterapia, a julgar por este livro, está algures entre a bula médica, a crítica literária e um livro de auto-ajuda. Pode dizer-nos como funciona tudo isto para lá do papel?
É uma boa forma de pôr as coisas, gosto da ideia da bula médica (drug leafleat). Quando começámos a biblioterapia, em 2008, decidimos que seria uma grande ideia fazermos uma sessão terapêutica com uma pessoa, que duraria cerca de uma hora, onde tentaríamos saber tudo sobre ela, sobretudo a sua relação com os livros e o estado da sua vida no momento. É algo semelhante a uma sessão terapêutica a sério em que o cliente pode tomar duas opções: ver isto como uma boa oportunidade de falar sobre livros e olhar-nos como bibliotecárias ou, então, dizer-nos mais sobre a sua vida interior e os seus desejos. Quando decidimos sobre a prescrição a aplicar – daí ser engraçada a metáfora da bula médica -, receitamos seis livros. Normalmente três dos livros são mais medicinais, que tocam o cerne da vida e os problemas dos pacientes, enquanto os restantes três são mais para entretenimento, virados para o escapismo e o estímulo da mente. É sempre uma mistura entre a medicina e o prazer. A nossa missão é levar as pessoas a lerem diferentes coisas, a experienciar algo para o qual nunca se tinham lembrado de olhar.
Como transformaram uma brincadeira de amigas numa terapêutica a sério, com consultas e tudo?
Eu e a Susan conhecemo-nos aos 18 anos na Universidade de Cambridge, e nessa fase brincávamos ao jogo de receitar uma à outra livros que ajudassem com problemas como ter o coração partido ou passar por crises sobre a carreira profissional ou a mudança para outro país. A Susan tornou-se uma romancista e eu uma artista mas, durante dez anos, continuámos a receitar livros uma à outra, bem como a amigos e familiares. Acabámos depois por conhecer o Alain de Botton, que estava a lançar a School of Life na Bloomsbury de Londres, e que adorou a ideia de nos ter a fazer biblioterapia num serviço de um para um. Foi ele que nos aconselhou a fazer isto mais a sério, mas não fazíamos a mínima ideia de como seria. As sessões acabaram por ter uma publicidade louca, as pessoas aderiram e as sessões de biblioterapia tiveram filas enormes, servidas em sessões de 10 minutos como aperitivo. A partir daí tudo andou muito depressa.
Como é constituída a equipa?
Neste momento temos seis biblioterapistas: três em Londres, duas na Austrália e uma na América. Provavelmente cada uma de nós verá dois ou três pacientes por semana. Por vezes acontece termos alguém a telefonar dizendo que precisa uma sessão com urgência, mas regra geral é porque está quase a ir de férias e precisa de algumas recomendações literárias.
Usam bata branca e estetoscópio?
Apenas para festivais, onde temos até uma ambulância. Mas nas situações normais do dia-a-dia vestimos roupas normais.
Têm tido alguns clientes insatisfeitos, que regressam queixando-se de efeitos secundários?
Não consigo pensar em alguém que tenha reagido negativamente. Tive uma senhora que ficou muito zangada porque não percebeu o que era a biblioterapia, e que estaria à espera que eu lhe escrevesse uma lista de 50 livros trocando a biblioterapia por um serviço bibliotecário. Normalmente compreendemos aquilo que os leitores gostam e não gostam, e isso dá-nos uma indicação de como irão reagir perante determinados livros. Sem efeitos secundários.
José Cardoso Pires, Agustina Bessa-Luís, José Saramago, Eça de Queirós. Os escritores portugueses mais clássicos têm lugar neste dicionário. E quanto aos novos nomes da Literatura Portuguesa, têm servido de remédio para algumas maleitas?
Penso que há um escritor moderno na lista, o Manuel Jorge Marmelo. O Francisco José Viegas foi maravilhoso ao falar-nos dos melhores escritores portugueses que não tínhamos ainda lido. Conhecíamos apenas alguns, uma vez que muitos deles não estão traduzidos. Sempre que o nosso livro é traduzido para uma nova língua ficamos muito entusiasmadas em conhecer os novos autores desse país.
A lista de nomes é, no entanto, grande.
Sim, mas para ser honesta é fruto do bom trabalho de editor do Francisco. Tínhamos Saramago, Pessoa e um ou outro nome, mas foi ele o responsável pela inclusão dos outros nomes.
O divórcio parece ser a entrada do dicionário que representa o maior volume de medicamentos.
Isso deve-se ao facto de ser difícil ter apenas uma abordagem em relação ao assunto. Algumas pessoas estão felizes, outras de coração despedaçado. Outras querem encontrar um novo parceiro outras dizem que nunca mais vão querer ter ninguém a seu lado. Por isso tivemos de cobrir todas essas hipóteses, não sendo necessariamente uma questão de termos muita gente à procura de remédios. Acho que os problemas mais frequentes são estar numa encruzilhada, seja a nível pessoal ou profissional, passar por uma depressão, cuidar de pessoas que estão doentes ou ter parentes idosos, ser um novo pai, ter dificuldades com as crianças. Curiosamente, pensando nas edições diferentes dos países, há sempre novos elementos quando o livro é traduzido. Na Holanda, por exemplo, havia dois elementos: ser demasiado orgulhoso dos filhos e ser demasiado desinteressado em relação aos filhos (risos).
Outro dos temas a que são dedicadas mais páginas é a morte. Sendo o livro e o projecto algo que contém em si mesmo uma boa dose de humor, como é lidar com pessoas que estão a atravessar um período menos bom ligado à morte de alguém chegado?
É um tema muito complicado e difícil, mas a coisa boa dos encontros pessoais é que nunca damos apenas um livro como cura, mas seis. Temos a oportunidade de dar a essas pessoas algo sério e para reflexão, que poderão fazer eco desses sentimentos, como o “O Ano do Pensamento Mágico”, de Joan Didion, que é muito analítico sobre o que é perder alguém. Mas teremos também algo mais animador e positivo, como as “Metamorfoses” de Ovídio, que é sobre a mudança e o ciclo eterno da vida. E tentaremos também ter algo mais humorístico. Depende sempre de cada um, temos de ser muito sensíveis. Muitas vezes essas pessoas nem querem ler, e por vezes sugerimos poesia ou ouvir alguém ler em voz alta. Falamos de diferentes formas de como se poderão distrair através da leitura.
Não sentem por vezes estar a fugir da biblioterapia e a entrar no mundo da psicologia?
Sim, isso foi um elemento algo inesperado do nosso trabalho. Primeiro pensámos na biblioterapia como forma de conduzir as pessoas aos livros certos mas, ao fim de algumas sessões, percebemos que temos também esse papel. Que é algo de que tanto eu como a Susan gostamos muito, e por vezes pensámos em treinar para ser terapeutas a sério, usando a biblioterapia como ferramenta. Mas acabámos por decidir sermos apenas biblioterapistas e não levar isto para o campo medicinal, porque desvirtuaria a nossa abordagem inicial.
Parece ter uma predilecção especial por audiolivros. Li algures que costuma ouvir literatura enquanto pinta.
Os audiolivros são a forma como tenho sobrevivido nos papéis de mãe e artista, a forma como consigo ser, ao mesmo tempo, artista e biblioterapista. Recentemente a escrita tomou um pouco conta da situação, mas este Verão irei regressar à pintura.
Que livros estão na sua prateleira favorita?
“Digital Perfume”, de Tom Robbins, “Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago, “Bel Canto”, de Ane Pratchett – que é uma cura para uma série de coisas -, as “Metamorfoses” de Ovídeo, “Sir Gawain and the Green Knight” – um livro escrito no século XIII.
É possível conhecer a alma literária de alguém?
Sim, mas demoraria muito tempo. Numa hora descobrimos muito sobre uma pessoa, bem como sobre os livros que adoram, que odeiam e aquilo que estão a ler no tempo presente, mas quanto à alma literária isso iria demorar muitas sessões. As pessoas mudam constantemente bem como os seus gostos literários, por isso seria muito complicado.
As drogas sabem melhor quando tomadas em conjunto?
Um dos grandes prazeres da leitura é a solidão, e muitas pessoas que conheço amam a solidão. Mesmo que tenham companhia acaba por ser sempre um acto solitário. Mas acho que é bom ter companhia numa mesma sala enquanto se lê. Gosto também da leitura em voz alta, e isso é algo de muito especial – mas que exige muito esforço e não pode ser feito a todo o momento.
Há rumores de que está em preparação uma versão deste livro para crianças. Para que maleitas serão destinadas as curas literárias?
Sim, acabámos de o terminar e estamos em fase de edição, temos ainda de cortar 20000 palavras até ao fim deste mês. O livro servirá para ajudar os pais a encontrarem os livros certos para os seus filhos, dos 0 aos 18 anos. Cobrimos uma grande variedade de assuntos infantis, desde ter medo do escuro, fazer grandes viagens de carro, visitar parentes de que não se gosta, ser vítima de bullying, mudar de escola, não gostar da escola, até questões como ter problemas com os pais, acompanhar o divórcio dos pais, viver com apenas um dos pais. Há também muitas questões relacionadas com o amor, como o primeiro beijo, o primeiro amor, a primeira experiência sexual, o clássico coração partido. Vamos dos miúdos pequenos à adolescência, mas decidimos não repetir qualquer livro dos “Remédios Literários”. O que acabou por ser uma grande aventura.
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