Desde 2015 até hoje, Carla Pais foi distinguida com prémios literários nos géneros de romance, conto e poesia. “Um Cão Deitado à Fossa” (Porto Editora, 2022), o seu último romance, vencedor do Prémio Literário Cidade de Almada 2018, inclui uma interessante nota biográfica sobre a autora. Nascida em Leiria, em 1979, abandonou a escola aos 17 anos para ser mãe, mas veio a terminar o 12º ano à noite. “Em 2012, partiu para França, onde fez limpezas, embalou salmão e tomou conta de crianças”, encontrando-se actualmente a trabalhar num Centro de Formação à Distância.
Perante tal experiência de vida, decidimos indagar a respectiva influência no trabalho da autora, numa entrevista que procurou também conhecer a sua opinião sobre certos problemas sociais, bem como levantar um pouco do véu sobre o processo criativo que lhe permite conjugar, pungentemente, um lirismo belíssimo com a crueza do sofrimento humano, através da história de uma família disfuncional marcada por um legado de violência.
Os seus textos possuem um grande lirismo, que alterna com a linguagem crua das personagens. Qual destes dois tipos de vozes está mais presente quando começa a estruturar uma ideia – ou será que se entrelaçam desde o início na escrita das suas obras?
Normalmente, o tom da narrativa vem com o primeiro personagem, o que está na origem da história. Ainda assim, na maioria das vezes, é o lirismo que prevalece, talvez porque as histórias nascem quando tropeço num poema que me toca mais do que o previsto.
As suas narrativas tendem a desenrolar-se num meio rural. O que a leva a preferir este meio para o desenvolvimento das personagens, ou da acção?
Até agora apeteceu-me escrever sobre o meio rural porque nasci e cresci numa aldeia, e portanto estou perfeitamente à vontade para dar voz a este meio tão fora de moda na nossa literatura.
O título do seu último livro, “Um Cão Deitado à Fossa”, remete para um poema de Herberto Hélder. Considerando que este autor também é evocado noutra obra sua, “Mea Culpa”, podemos concluir que se trata de uma das suas principais referências literárias? Existem outros autores que aprecie particularmente, que a inspirem ou que queira destacar?
Herberto Hélder é um poeta que aprecio particularmente pela riqueza que impõe à cadência rítmica do poema. No fundo gosto de autores que desconstruam a regra e levem o leitor ao sublime da linguagem, à decomposição do texto, e ainda assim nos ofereçam a força narrativa ou poética que se espera da inovação literária – como Rui Nunes, por exemplo. Mas também aprecio autores que se atrevam a tocar assuntos delicados e tragam ao leitor a sofisticação da literatura. No fundo, não sou uma leitora difícil, gosto de descobrir autores e deliciar-me com o prazer que é a leitura.
O protagonista de “Um Cão Deitado à Fossa”, que acompanhamos desde a infância até à velhice, chama-se Urbano e nasce numa família altamente disfuncional. O facto de o pai e a mãe serem figuras sem nome próprio foi propositado, para transformá-los em arquétipos da dominação masculina e da submissão feminina?
Nos meus livros há sempre 2 ou 3 personagens que têm nome, e todos os outros ficam marcados por características próprias que os identificam. Não por vontade minha, apenas porque por vezes os personagens são caprichosos e insistem em não desvendar os nomes. Não insisto porque um personagem zangado é um personagem que pode enlouquecer o autor… nem sempre o processo criativo é palco de explicações lógicas e matemáticas que permitam esclarecer a curiosidade alheia. Por vezes acontece naturalmente, sem nenhuma razão intencional.
Como avalia a sociedade actual, em termos das relações entre os sexos?
A sociedade, disfuncional. As relações, superficiais. Infelizmente, não vejo as mudanças que gostaria de ver, pois o poder patriarcal e hierarquizado é ainda muito presente. Mais disfarçado porque é bonito dizer que somos civilizados e avançamos socialmente. No fundo, aprendemos apenas a dissimular os comportamentos, a embalar o outro com a ideia de mudança. Não há mudança nenhuma, o respeito entre as pessoas é frágil e quebra-se muito rapidamente, bastam duas contrariedades consecutivas para que um casal, por exemplo, entre numa espiral de violência e ruptura. E isto pode acontecer aos 40 anos como pode acontecer aos 20. Não é, portanto, uma questão de gerações, é uma questão de educação e de exemplos que se perpetuam entre indivíduos que interagem em sociedade. Uma sociedade que espezinha e recicla os seus valores ao mesmo nível que recicla uma garrafa de plástico.
Talvez fosse importante, de uma vez por todas, comparar os níveis de violência e agressões entre países e analisar os modelos de educação desses mesmos países. Mas enquanto continuarmos a tratar a questão de forma isolada e nos mantivermos agarrados a heranças históricas, pouco ou nada mudará. E claro que as redes sociais são o terreno perfeito para treinar a mentira e a hipocrisia, o que piora em muito o assunto se pensarmos que estamos na era digital e que tudo se expande desmesuradamente.
Após a morte do pai, Urbano pensa: “Foi-se a besta, agora posso ser gente”. A noção de “ser gente” leva-o a reproduzir, sobre a mulher e os filhos, o padrão de dominação que aprendeu com o pai, mas o seu próprio filho, Abel, parece conseguir romper esse ciclo vicioso. O que crê que leva algumas pessoas a romper esse tipo de ciclos, enquanto outras os perpetuam, mesmo quando também sofrem com eles?
Gostaria de ter uma resposta exata a esta questão, mas não tenho. Tenho uma convicção que não servirá de regra, pois o comportamento do homem não é assim tão delinear e está sujeito a vários fatores que poderão ser elementos de influência, nomeadamente a sociedade que integramos ou os valores que essa sociedade defende como filosofia de vida. Neste caso, acho que foi precisamente isso, a mudança de país como um renascimento enquanto indivíduo.
A nota biográfica que acompanha os seus livros é bastante original. Pode falar-nos das etapas da sua vida que mais contribuíram para a transformar na escritora que é hoje (e de que forma o fizeram)?
Acredito que a minha biografia suscite curiosidade pelo facto de ser atípica. Ser mãe aos 17 anos permitiu-me chegar aos 40 com filhos autónomos, e isso traz-me disponibilidade para passar uma tarde inteira a ler ou a escrever sem me preocupar com fraldas e sestas e birras e tudo o que envolve os cuidados a ter com uma criança. Tudo o resto foi pensado, reflectido e decidido com total consciência, nomeadamente a mudança de país. Fazer limpezas, ao contrário do que a maioria possa imaginar, foi uma experiência perfeita para aprender a língua e gerir o tempo de adaptação e integração de toda a família. Isto porque não vivo de estatutos, mas de convicções e de um punhado de determinação. Quem fez de mim a escritora que sou hoje, foram todos os autores que li ao longo de todas estas fases.
Já ponderou escrever uma autobiografia?
Não teria nada de interessante a dizer, creio… faltam-me viver mais 40 anos 😊
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