No final de 2020, a Bertrand Editora publicou uma nova versão de “Bela”, a biografia ficcionada da poetisa Florbela Espanca, escrita por Ana Cristina Silva há 15 anos. Com uma carreira literária de quase duas décadas, a autora, que também é professora e investigadora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, na área de Aquisições Precoces da Linguagem Escrita, Ortografia e Produção Textual, tem no seu currículo 14 romances e um livro de contos. Por três vezes, foi finalista do Prémio Fernando Namora (em 2011, 2012 e 2013), tendo-o recebido em 2017, com “A Noite Não é Eterna”. Foi também distinguida com o Prémio Urbano Tavares Rodrigues, pela obra “O Rei do Monte Brasil”, em 2012.
“Bela” é um romance psicológico belíssimo e envolvente, que nos faz mergulhar na psique de Florbela Espanca. A propósito da mais recente edição entrevistámos a autora, que nos conta, entre outras coisas, como a sua escrita se tornou mais depurada ao longo dos anos e de que forma a sua formação de base em psicoterapia a ajudou a compor esta obra fascinante. Confessa também a fantasia de ter conseguido, através deste livro, corresponder ao desejo de Florbela de ser compreendida. Confrontados com a mágoa em que a poetisa viveu, que nos é transmitida com extrema sensibilidade a cada página do livro, somos levados a partilhar essa fantasia.
Na nota final à nova edição do seu livro “Bela”, explica que houve uma reescrita de grande parte da primeira edição, publicada há quinze anos, uma vez que a sua forma de escrever é hoje diferente. Pode falar-nos acerca dessas mudanças?
Eu era mais palavrosa, acho que à medida que ganhamos experiência pretendemos que as metáforas e comparações se ajustem com mais precisão à dinâmica narrativa. Essa foi a principal diferença. Nestes 19 anos que levo de literatura, o que aprendi foi a fazer revisões e a lutar comigo própria para a melhoria da qualidade do livro, e isso requer um trabalho mais analítico e menos apaixonado. Trabalhei a partir da primeira versão do romance, nem sequer aquele que saiu no livro da Ambar, mas a estrutura é praticamente a mesma, a visão de Florbela também, fui depurando a linguagem e muito.
O seu fascínio pela figura de Florbela Espanca está bem patente neste livro. O que mais a atraiu na obra e na vida desta poetisa?
A sua resistência às imposições de uma sociedade patriarcal, sobretudo para uma rapariga que nasceu no Alentejo no final do século XIX. Isso vê-se na sua busca pelo amor com os seus 3 casamentos, no seu esforço para frequentar a universidade, na sua persistência em ser publicada, até no facto de ter andado a passear de calças em Évora. Em relação à obra, é muito interessante como os seus sonetos são capazes de tocar nas emoções mais profundas das pessoas. Os seus poemas incidem sobre sentimentos que são partilhados por todas as pessoas: o amor e a ânsia pelo amor (que se torna muito sedutor para os jovens que experienciam as primeiras paixões), a dor e mágoa… são poemas com uma sonoridade própria e que induzem a uma fácil identificação aos sentimentos pessoais. A poesia era para Florbela a sua forma de expressão natural, estou convencida disso. Tal como existem génios da melodia em que a sonoridade da música os acompanha para todo o lado, Florbela tinha dentro de si poemas. Não acho que fosse uma catarse nem uma forma de acentuar a sua mágoa, mas de a exprimir, de lhe dar forma.
De que forma a sua formação académica contribuiu para a representação das psiques de Florbela e das outras figuras cujos pontos de vista apresenta no livro?
Muito. Apesar de me dedicar à investigação em educação, a minha formação de base é a psicoterapia, e neste romance eu assumi que a Florbela era uma personalidade limite, uma borderline. As personalidades borderline definem-se pelo desespero do abandono e por vinculações muito frágeis na infância. Esse desespero terá chegado à vida de Florbela pelas circunstâncias muito particulares do seu nascimento. Nascida de uma relação extraconjugal foi criada pela legítima mulher do seu pai que provavelmente nunca a terá aceitado. Terá amado o seu pai como qualquer menina, mas foi sempre a filha bastarda. O único amor seguro que terá conhecido na infância terá sido o do seu irmão Apeles. Florbela menina foi, sem dúvida, uma criança magoada, e a minha hipótese é que isso se reflectiu sempre nas temáticas dos seus poemas: o amor, a dor, a morte e a superioridade dos poetas.
A dupla moral existente em Portugal, na viragem do século XIX para o XX, ao nível da avaliação dos comportamentos de homens e mulheres, não passa despercebida na história. Como avalia a situação actual, em comparação com a do tempo de Florbela Espanca? Que impacto teve a obra de Florbela Espanca a esse nível no passado e como poderá a sua leitura influenciar a forma como as mulheres de hoje constroem e dão significado às suas relações românticas?
Os progressos em relação à condição feminina são imensos, ao mesmo tempo essa evolução não foi tão grande como seria desejável. Basta, por exemplo, pensar nos estudos da Universidade do Minho sobre a violência no namoro e a percentagem muito elevada de jovens que considera a violência aceitável. Ou como a sociedade continua a culpabilizar as vítimas de violência doméstica ou de assédio sexual. Eu não considero a Florbela uma feminista no sentido de se empenhar numa luta colectiva de mulheres como aconteceu, por exemplo, com as sufragistas. Foi uma mulher que lutou pela sua liberdade individual.
Se pudesse viajar no tempo e encontrar Florbela Espanca numa certa etapa da sua vida, que etapa escolheria e o que lhe diria?
Oferecer-lhe-ia o livro. Há uma citação no início do romance do seu diário do último ano que diz o seguinte: “Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo – uma alma – se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que fui e julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me”. E eu tenho esta fantasia de que de algum modo correspondi ao desejo dela. É uma fantasia de autora, reconheço.
Numa sociedade onde a expressão da tristeza é, por vezes, reprimida, que lugar pode haver para autores como Florbela Espanca, cuja obra é tão marcada pela mágoa?
Sim, vivemos numa sociedade em que temos de ser todos sempres alegres, positivos, e onde as pessoas têm cada vez menos paciência para escutar expressões de tristeza. Os poemas de Florbela podem servir como via de identificação: há alguém que sentiu o mesmo que estou a sentir e, nesse sentido, podem ajudar as pessoas a sentirem-se menos sós.
A Ana Cristina Silva, além de escritora, também é professora universitária. Com base no contacto que tem com os jovens estudantes, qual diria que é o papel da leitura de poesia nas suas vidas? Alguma vez recorreu à literatura não académica nas suas aulas?
Infelizmente, os jovens universitários lêem pouca literatura e pouca poesia. A poesia tem um papel fundamental na capacidade para reconhecer as emoções do próprio e as emoções dos outros, o que para quem está a estudar psicologia, mas não só, me parece fundamental. Não é por acaso que o mestrado de medicina no Porto começou a oferecer uma cadeira opcional de poesia. E sim, curiosamente desde o ano passado, passo, no final de cada aula, um pequeno vídeo de alguém a recitar poesia. Achei que seria uma maneira de lidarmos com as nossas emoções nestes períodos de confinamento e, ao mesmo tempo, de dar a conhecer aos meus alunos muitos poetas portugueses.
A palavra “quimera” surge com bastante frequência no texto, sendo encontrada pela primeira vez logo na citação que faz de Boris Cyrulnik, no início do livro. Considera que as quimeras que Florbela Espanca foi levada a construir, para suportar as mágoas sofridas na infância, determinaram o resto da sua vida? Será que todos somos produtos das nossas quimeras?
A palavra quimera é uma palavra que ela usa muito nos seus poemas. O sonho, estou-me a referir ao sonhar acordar é, desde que não seja delírio, uma forma de superarmos as dificuldades. No caso da Florbela, acho que a sua infância e o abandono precoce que sofreu determinou muito do desespero com que viveu rapidamente a sua curta vida. Curta, mas plena de acontecimentos. Não acredito, no entanto, numa relação linear, de causa-efeito entre uma infância menos feliz e uma vida menos conseguida, apesar de ser difícil a libertação em relação a determinadas dimensões da personalidade.
Fotos: Fernando Dinis
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