Amadeu Lopes Sabino (1943-), ficcionista e ensaísta, já foi jornalista, advogado e funcionário da União Europeia. O seu mais recente livro intitula-se “Tempo de Fuga” (Porto Editora, 2021) e tem como protagonista um funcionário público português que, em pleno salazarismo, se dedica à espionagem por diversão, ficcionando a realidade e enredando-se numa teia perigosa que se entende de Portugal à Alemanha de Leste, passando por Espanha.
Jorge Mathias, protagonista do seu livro “Tempo de Fuga”, estava confortavelmente instalado no Ministério da Economia do Estado Novo, mas escolheu tornar-se espião por desenfastio. Qual foi a inspiração para a concepção desta personagem?
Amigos, companheiros, conhecidos, desconhecidos. Oiço, vejo e calo, como aconselhava D. João Manuel. Calo mas escrevo. Tudo em volta me serve de tema, mais do que de inspiração (algo que não sei muito bem o que seja). Para além de algumas razões mais nobres, o desenfado, ou desfastio, sempre esteve na origem das acções clandestinas (políticas, amorosas, de espionagem ou de simples mal-dizer). Basta olhar em volta.
Deduz-se que o facto de nos dizer que o Mathias progrediu na carreira graças à discrição e à aparente falta de ambição é uma crítica ao funcionalismo público. Vê alguma evolução a esse nível, desde a época em que a acção se desenrola até à actualidade?
A discrição é uma virtude do funcionário, nomeadamente do funcionário que espia, o qual vê e cala. Greene e John le Carré ilustram bem quanto a espionagem e a escrita de novelas são actividades semelhantes. Mathias vê, cala, espia, inventa e escreve. Como um escritor. Dito isto, não vejo em que medida a carreira do meu protagonista possa constituir uma crítica ao funcionalismo público português, que aliás conheço mal.
Mathias é, acima de tudo, um hedonista sem grandes preocupações ideológicas. Serão as convicções um fardo, como diz a certa altura uma personagem do livro?
Para um hedonista, as convicções são, inevitavelmente, um fardo. O princípio do prazer pode levá-lo a negá-las. Se se trata, de facto, de convicções, negá-las não é fácil. Nessa medida são um fardo. Com o qual o hedonista tem de se debater.
No livro, através das experiências de Mathias em Portugal e na Alemanha Oriental, parece haver um esbater de fronteiras ideológicas entre as ditaduras comunista e fascista, cada qual com a sua polícia política e o respectivo exército de informadores. Este efeito de espelho foi intencional? Considera que todas as ditaduras acabam por se assemelhar, mesmo que partam de valores diferentes?
Parafraseando Gertrud Stein, uma ditadura é uma ditadura, é uma ditadura. Quanto ao modo como tratam a liberdade individual, todas se confundem. Não gostam da liberdade de pensar, escrever, discutir, contestar. Os valores das polícias políticas são idênticos, na Stasi ou na PIDE.
Uma personagem de “Tempo de Fuga” declara a certa altura: “Dentro de uns anos, tudo aquilo em que acreditamos será um feixe de arcaísmos”. Partilha essa opinião? Considera que um ideal pode morrer definitivamente, em vez de passar por ciclos de vida, morte e renascimento?
Não confunda, por favor, o que dizem os personagens com o que eu penso ou não penso. Isto dito, os ideais de um “honnête homme” do século XVII não coincidem com os de um “honnête homme” do século XXI. E os ideais de há cinquenta ou cem anos são hoje, em grande medida, arcaísmos. Faço parte de uma geração que acreditou honestamente em ideais que hoje são arcaísmos.
“As mentiras mais perfeitas são as que contamos a nós próprios”. Não serão todas as referências culturais de que Mathias se rodeia formas diferentes de mentiras, que o ajudam a habitar o seu mundo? Será possível viver ser elas?
Vivemos rodeados de algumas verdades e muitas mentiras. Algumas bem agradáveis. Como poderíamos viver sem elas? A montante dessas vivências, reside a pergunta de Pilatos a Cristo: “Quid est veritas?” Que é a verdade?
A conspiração que Mathias inventa e transmite aos seus superiores poderia ter tido consequências graves. Seria possível conceber a partir daqui uma outra obra, de história alternativa, ou tal perspectiva não o atrai?
“Tempo de Fuga” é já uma história alternativa.
Pode revelar algo acerca do seu próximo projecto literário?
Escrevi ou finalizei três livros durante a pandemia. O meu actual projeto literário consiste em publicá-los.
Foi alvo da censura e da perseguição do regime salazarista, tendo optado pelo exílio. Como foi o seu regresso a Portugal? As suas expectativas em relação à revolução de 25 de Abril de 1974 foram cumpridas?
Vivemos numa democracia liberal, integrada na União Europeia. Entre as muitas coisas que eu esperava, ou desejava (e de um modo geral, os portugueses), em 1974, incluíam-se vários cenários, alguns contraditórios entre si, e um feixe de probabilidades. Entre estas, o Portugal de hoje. Nessa medida, as minhas expectativas cumpriram-se. Estamos, em termos de regime político, muito longe do salazarismo. Quanto às mentalidades, a situação é diferente. Aguardemos.
Foi funcionário da União Europeia durante vários anos, em Bruxelas, chegando a desempenhar funções de conselheiro especial do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. Como avalia essas experiências? O que lhe apraz dizer acerca da acção da União Europeia?
Sou, como toda a gente, eu e as minhas circunstâncias. As minhas experiências profissionais incluem-se nessas circunstâncias. Enquanto funcionário da UE participei na criação de institutos jurídicos que moldam a vida quotidiana dos europeus, nomeadamente dos portugueses. Explicar o que penso da UE levaria a redigir um tratado. Direi apenas: sou europeísta, penso que a UE deve reforçar poderes na Europa e no Mundo. Não vejo que, para os povos europeus, entre eles o povo português, exista uma alternativa a esse percurso de paz e convivência. O nacionalismo é a guerra, o cosmopolitismo, a paz. Tal como o protagonista de “Tempo de Fuga”, recusei o Portugal fechado de Salazar e a Alemanha de Hitler ou de Honecker. Gosto de uma Europa sem fronteiras, nem físicas, nem mentais. Sempre me senti em casa em qualquer país europeu. Agora sinto-me da casa.
Em 2012, manifestou-se a favor do acordo ortográfico em vigor. Mantém essa posição? Em caso negativo, o que o levou a mudar de opinião? Em caso afirmativo, foram cumpridas as suas expectativas acerca do acordo?
A ortografia é um acidente da língua, não é o núcleo duro da língua. Confesso que o tema não me apaixona. É algo que interessa sobretudo à revisão. O Acordo está em vigor. É tudo.
1 Commentário
Ótima entrevista, tanto por parte do entrevistado como do entrevistador.