• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Mil Folhas 1

Entrevista: Amadeu Lopes Sabino

Por Isabel Daires · Em 30/09/2021

Amadeu Lopes Sabino (1943-), ficcionista e ensaísta, já foi jornalista, advogado e funcionário da União Europeia. O seu mais recente livro intitula-se “Tempo de Fuga” (Porto Editora, 2021) e tem como protagonista um funcionário público português que, em pleno salazarismo, se dedica à espionagem por diversão, ficcionando a realidade e enredando-se numa teia perigosa que se entende de Portugal à Alemanha de Leste, passando por Espanha.

Tempo de Fuga, Amadeu Lopes Sabino, Crítica, Deus Me Livro, Porto Editora

Jorge Mathias, protagonista do seu livro “Tempo de Fuga”, estava confortavelmente instalado no Ministério da Economia do Estado Novo, mas escolheu tornar-se espião por desenfastio. Qual foi a inspiração para a concepção desta personagem?

Amigos, companheiros, conhecidos, desconhecidos. Oiço, vejo e calo, como aconselhava D. João Manuel. Calo mas escrevo. Tudo em volta me serve de tema, mais do que de inspiração (algo que não sei muito bem o que seja). Para além de algumas razões mais nobres, o desenfado, ou desfastio, sempre esteve na origem das acções clandestinas (políticas, amorosas, de espionagem ou de simples mal-dizer). Basta olhar em volta.

Deduz-se que o facto de nos dizer que o Mathias progrediu na carreira graças à discrição e à aparente falta de ambição é uma crítica ao funcionalismo público. Vê alguma evolução a esse nível, desde a época em que a acção se desenrola até à actualidade?

A discrição é uma virtude do funcionário, nomeadamente do funcionário que espia, o qual vê e cala. Greene e John le Carré ilustram bem quanto a espionagem e a escrita de novelas são actividades semelhantes. Mathias vê, cala, espia, inventa e escreve. Como um escritor. Dito isto, não vejo em que medida a carreira do meu protagonista possa constituir uma crítica ao funcionalismo público português, que aliás conheço mal.

Mathias é, acima de tudo, um hedonista sem grandes preocupações ideológicas. Serão as convicções um fardo, como diz a certa altura uma personagem do livro?

Para um hedonista, as convicções são, inevitavelmente, um fardo. O princípio do prazer pode levá-lo a negá-las. Se se trata, de facto, de convicções, negá-las não é fácil. Nessa medida são um fardo. Com o qual o hedonista tem de se debater.

No livro, através das experiências de Mathias em Portugal e na Alemanha Oriental, parece haver um esbater de fronteiras ideológicas entre as ditaduras comunista e fascista, cada qual com a sua polícia política e o respectivo exército de informadores. Este efeito de espelho foi intencional? Considera que todas as ditaduras acabam por se assemelhar, mesmo que partam de valores diferentes?

Parafraseando Gertrud Stein, uma ditadura é uma ditadura, é uma ditadura. Quanto ao modo como tratam a liberdade individual, todas se confundem. Não gostam da liberdade de pensar, escrever, discutir, contestar. Os valores das polícias políticas são idênticos, na Stasi ou na PIDE.

Uma personagem de “Tempo de Fuga” declara a certa altura: “Dentro de uns anos, tudo aquilo em que acreditamos será um feixe de arcaísmos”. Partilha essa opinião? Considera que um ideal pode morrer definitivamente, em vez de passar por ciclos de vida, morte e renascimento?

Não confunda, por favor, o que dizem os personagens com o que eu penso ou não penso. Isto dito, os ideais de um “honnête homme” do século XVII não coincidem com os de um “honnête homme” do século XXI. E os ideais de há cinquenta ou cem anos são hoje, em grande medida, arcaísmos. Faço parte de uma geração que acreditou honestamente em ideais que hoje são arcaísmos.

Tempo de Fuga, Amadeu Lopes Sabino, Crítica, Deus Me Livro, Porto Editora“As mentiras mais perfeitas são as que contamos a nós próprios”. Não serão todas as referências culturais de que Mathias se rodeia formas diferentes de mentiras, que o ajudam a habitar o seu mundo? Será possível viver ser elas?

Vivemos rodeados de algumas verdades e muitas mentiras. Algumas bem agradáveis. Como poderíamos viver sem elas? A montante dessas vivências, reside a pergunta de Pilatos a Cristo: “Quid est veritas?” Que é a verdade?

A conspiração que Mathias inventa e transmite aos seus superiores poderia ter tido consequências graves. Seria possível conceber a partir daqui uma outra obra, de história alternativa, ou tal perspectiva não o atrai?

“Tempo de Fuga” é já uma história alternativa.

Pode revelar algo acerca do seu próximo projecto literário?

Escrevi ou finalizei três livros durante a pandemia. O meu actual projeto literário consiste em publicá-los.

Foi alvo da censura e da perseguição do regime salazarista, tendo optado pelo exílio. Como foi o seu regresso a Portugal? As suas expectativas em relação à revolução de 25 de Abril de 1974 foram cumpridas?

Vivemos numa democracia liberal, integrada na União Europeia. Entre as muitas coisas que eu esperava, ou desejava (e de um modo geral, os portugueses), em 1974, incluíam-se vários cenários, alguns contraditórios entre si, e um feixe de probabilidades. Entre estas, o Portugal de hoje. Nessa medida, as minhas expectativas cumpriram-se. Estamos, em termos de regime político, muito longe do salazarismo. Quanto às mentalidades, a situação é diferente. Aguardemos.

Foi funcionário da União Europeia durante vários anos, em Bruxelas, chegando a desempenhar funções de conselheiro especial do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. Como avalia essas experiências? O que lhe apraz dizer acerca da acção da União Europeia?

Sou, como toda a gente, eu e as minhas circunstâncias. As minhas experiências profissionais incluem-se nessas circunstâncias. Enquanto funcionário da UE participei na criação de institutos jurídicos que moldam a vida quotidiana dos europeus, nomeadamente dos portugueses. Explicar o que penso da UE levaria a redigir um tratado. Direi apenas: sou europeísta, penso que a UE deve reforçar poderes na Europa e no Mundo. Não vejo que, para os povos europeus, entre eles o povo português, exista uma alternativa a esse percurso de paz e convivência. O nacionalismo é a guerra, o cosmopolitismo, a paz. Tal como o protagonista de “Tempo de Fuga”, recusei o Portugal fechado de Salazar e a Alemanha de Hitler ou de Honecker. Gosto de uma Europa sem fronteiras, nem físicas, nem mentais. Sempre me senti em casa em qualquer país europeu. Agora sinto-me da casa.

Em 2012, manifestou-se a favor do acordo ortográfico em vigor. Mantém essa posição? Em caso negativo, o que o levou a mudar de opinião? Em caso afirmativo, foram cumpridas as suas expectativas acerca do acordo?

A ortografia é um acidente da língua, não é o núcleo duro da língua. Confesso que o tema não me apaixona. É algo que interessa sobretudo à revisão. O Acordo está em vigor. É tudo.

Amadeu Lopes SabinoDeus Me LivroEntrevistaPorto EditoraTempo de Fuga

Isabel Daires

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

1 Commentário

  • Gilda O.Cruz comentou: 01/10/2021 at 18:04

    Ótima entrevista, tanto por parte do entrevistado como do entrevistador.

    Resposta
  • Deixe uma opinião Cancelar

    Siga-nos aqui

    Follow @Deus_Me_Livro
    Follow on Instagram

    Mil Folhas

    • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

      Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

      08/05/2025
    • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

      Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

      08/05/2025
    • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

      “O Som da Mentira” | Amy Tintera

      07/05/2025
    • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

      “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

      07/05/2025
    • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

      “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

      30/04/2025
    Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

    Archives

    • May 2025
    • April 2025
    • March 2025
    • February 2025
    • January 2025
    • December 2024
    • November 2024
    • October 2024
    • September 2024
    • August 2024
    • July 2024
    • June 2024
    • May 2024
    • April 2024
    • March 2024
    • February 2024
    • January 2024
    • December 2023
    • November 2023
    • October 2023
    • September 2023
    • August 2023
    • July 2023
    • June 2023
    • May 2023
    • April 2023
    • March 2023
    • February 2023
    • January 2023
    • December 2022
    • November 2022
    • October 2022
    • September 2022
    • August 2022
    • July 2022
    • June 2022
    • May 2022
    • April 2022
    • March 2022
    • February 2022
    • January 2022
    • December 2021
    • November 2021
    • October 2021
    • September 2021
    • August 2021
    • July 2021
    • June 2021
    • May 2021
    • April 2021
    • March 2021
    • February 2021
    • January 2021
    • December 2020
    • November 2020
    • October 2020
    • September 2020
    • August 2020
    • July 2020
    • June 2020
    • May 2020
    • April 2020
    • March 2020
    • February 2020
    • January 2020
    • December 2019
    • November 2019
    • October 2019
    • September 2019
    • August 2019
    • July 2019
    • June 2019
    • May 2019
    • April 2019
    • March 2019
    • February 2019
    • January 2019
    • December 2018
    • November 2018
    • October 2018
    • September 2018
    • August 2018
    • July 2018
    • June 2018
    • May 2018
    • April 2018
    • March 2018
    • February 2018
    • January 2018
    • December 2017
    • November 2017
    • October 2017
    • September 2017
    • August 2017
    • July 2017
    • June 2017
    • May 2017
    • April 2017
    • March 2017
    • February 2017
    • January 2017
    • December 2016
    • November 2016
    • October 2016
    • September 2016
    • August 2016
    • July 2016
    • June 2016
    • May 2016
    • April 2016
    • March 2016
    • February 2016
    • January 2016
    • December 2015
    • November 2015
    • October 2015
    • September 2015
    • August 2015
    • July 2015
    • June 2015
    • May 2015
    • April 2015
    • March 2015
    • February 2015
    • January 2015
    • December 2014
    • November 2014
    • October 2014
    • September 2014
    • August 2014
    • July 2014
    • Contacto