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Alberto Barrera Tyszka, Entrevista, Pátria ou Morte, Porto Editora,Correntes d`Escritas,Correntes d`Escritas 2017,
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Entrevista: Alberto Barrera Tyszka

Por Pedro Miguel Silva · Em 04/03/2017

Dez anos depois de “Hugo Chávez sin uniforme: una historia personal”, uma biografia não oficial de Hugo Chávez publicada em 2005, Alberto Barrera Tyszka escreveu o romance “Pátria ou Morte” – publicado este ano pela Porto Editora -, um livro onde se toma o pulso a uma Venezuela prestes, então, a ficar órfã do seu mito. Aproveitámos a passagem do autor pela 18ª edição das Correntes d`Escritas para uma conversa em torno do auto-proclamado Messias venezuelano.

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Miguel Sanabria, que a certa altura percebemos nunca ter votado em Chávez, é uma personagem claramente desiludida, que parece ter colocado um ponto final na sua relação com o país: “Compreendeu que já estava saturado. No fundo, estava cansado da História. Sentia que a Venezuela era uma merda, um precipício que nem sequer chegava a ser país”. O que mudou na Venezuela depois da morte de Chávez?

Creio que terá havido uma mudança importante. Primeiro porque o carisma de Chávez era muito forte, com grande um protagonismo. Tudo girava ao seu redor, da sua pessoa, alguém que podia falar durante 8 horas. Não há nada que substitua isso, portanto a disputa entre o Chavismo e o anti-Chavismo perdeu um pouco o fôlego depois da sua morte. Algo que terá a ver também com a crise económica que o país atravessa. Chávez tinha uma promessa de bonança, a bonança petroleira. Quando Chávez morre o preço do petróleo desce, o que dá início a toda a crise económica, que é brutal. Neste momento estamos com um nível de inflacção de 500%, por isso o foco passou da política para a economia. Para a ideia de sobreviver.

Poderá dizer-se que Chávez foi a voz que melhor personificou a mítica invenção Orwelliana do Big Brother, alguém que criou um estado falante e fez da sua voz o fundamento de todo e qualquer poder?

A oralidade foi realmente muito importante. Chávez era uma espécie de Flautista de Hamelin, que deu um novo discurso e uma nova narrativa ao país. Uma daquelas personagens em que acreditávamos ou odiávamos. Mas a voz estava sempre presente. Chegou a dizer, por exemplo, que quem não era Chavista não era venezuelano. Uma frase que cito também no livro e que parece impensável associarmos a outro país, uma verdadeira loucura. Chávez tinha uma personalidade narcisista e construiu um país onde toda a gente ficou dependente de si. No livro trato não apenas de pensar em Chávez e no seu talento comunicacional ou carismático, mas de perceber – ou pelo menos questionar – como é que um país se deixou levar por este carisma, o que se passou com os venezuelanos para se terem mostrado de forma exarcebada a favor ou contra um líder deste tipo.

A certa altura são revelados ao leitor alguns dados do Observatório referentes a 2011: 19336 assassinatos. 12 por dia. 2 por hora. Sei que actualmente vive no México, que tem também as suas particularidades, mas como é viver na Venezuela, um país onde sair à rua parece ser uma aventura?

Sim, um desafio à estatística. É muito complicado, eu vivo em Caracas entre Novembro e Janeiro e, apesar de ser algo a que nos habituamos com a rotina, há coisas que fazemos para tentar o mínimo de segurança, como combinar um encontro com um amigo apenas durante o dia. Não há estatísticas oficiais da violência há muito tempo, da insegurança, apenas estes do Observatório e alguns feitos por algumas ONGs. Mas hoje em dia os dados são mais assustadores. O ano passado foram mais de 20000 os homicídios, o que faz de Caracas uma das cidades mais perigosas do mundo. As pessoas vivem neste lugar mas convivem com a violência, com a possibilidade de se ser assaltado a qualquer instante. Todos têm um familiar ou um amigo que já foi sequestrado. Há mesmo pessoas que têm uma quantidade de dinheiro escondida em sua casa para quando isso acontecer, 3000, 5000 dólares. É terrível pensar que a violência se converteu já em rotina, porque de alguma maneira estamos a viver numa guerra, um conflito bélico.

O livro apresenta também, através de uma caricatura realista, o discurso comunista datado, onde a culpa é posta nos empresários e no sistema capitalista. Não ficou ainda provado que o comunismo não passa de uma ditadura?

No caso da Venezuela, o que se passa é que Chávez tinha um discurso muito incomum. Quando surgiu em 1998, falava de Tony Blair e da terceira via. Pouco a pouco foi-se radicalizando e inventando esta coisa do socialismo, e fê-lo usando a palavra revolução, estendendo-a à América Latina, um território onde se partilha a desigualdade, a pobreza, a impunidade. É isso que marca o nosso território e o que lhe confere um índice de violência muito forte. Um discurso de esquerda, em geral, é algo que pode devolver alguma esperança. Foi um pouco isso que fez Chávez, pegando no caso de Cuba: o objectivo da Revolução é mantê-la, perpetuá-la a qualquer custo. Daí o projecto de Chávez ter sido um projecto militar, mais do que um mero discurso. O que hoje domina a Venezuela é uma cúpula militar.

Nos dias de hoje, a Venezuela continua a ser um quartel?

Chávez confiou sempre nos militares, e tratou desde logo de falar no projecto cívico militar. Hoje em dia, por exemplo, a Venezuela tem mais generais do que Espanha. Os militares estão em lugares-chave do funcionalismo público, da gerência do Estado. A sociedade militarizou-se, Maduro conferiu ainda mais poder aos militares, que hoje em dia se encarregam da gestão dos portos, da medicina, da distribuição dos alimentos. Estão à frente dos bancos e das companhias de seguros, dentro do negócio da exploração de petróleo, ouro e outros minérios. Desde 2014 ficaram habilitados por Maduro a reprimir manifestações de protesto civil com armas de guerra. É uma sociedade que aos poucos e em todos os níveis se militarizou.

Parece então que piorou desde Chávez.

Sim, porque na falta de carisma e da popularidade se apelou à força, ao Exército.

Como foi viver na Venezuela durante o reinado de Chávez e ter de lidar com a “eficácia do medo”?

É algo que tinha muito a ver com os jornalistas e com quem trabalhava na televisão, que passou por converter a auto-censura no grande regulador da liberdade de expressão. Dessa forma já não era necessário censurar. Eu trabalhava num canal de televisão independente, ao qual não foi renovada a concessão, e todos os outros canais entraram em pânico. Isso estendeu-se depois a outros sistemas, como o da importação de papel, criando um sistema onde o que regulava a liberdade de expressão era, na realidade, o medo de se ser reprimido. Algo muito mais eficaz e terrorífico, uma vez que a polícia está dentro de cada um, de cada casa, querendo actuar antes sequer da possibilidade de haver censura.

Definir-se-ia como um Chavista ou um esquálido?

Para um Chavista serei um esquálido ou um super-esquálido. No livro interessa-me muito a personagem do médido Miguel Sanabria, porque é alguém sensasto e com quem me identifico, mas com Chávez e numa sociedade polarizada parecia de todo impossível permanecer neutro. Estou contra Chávez desde 1992, escrevendo publicamente em jornais e assumindo uma formação anti-militar muito forte. Mas assumo que Chávez tinha, no seu discurso, alguma verdade, apelando a algumas coisas que eram certas. A sociedade venezuelana em 1998 queria uma mudança, estava desesperada por isso, tinha deixado de compreender um país mergulhado numa pobreza terrível. É por isso complicado escolher uma categoria.

Alberto Barrera Tyszka, Entrevista, Pátria ou Morte, Porto Editora,Correntes d`Escritas,Correntes d`Escritas 2017,Quanto de libreto e quanto de espontaneidade era Chávez?

Muitas das pessoas que entrevistei com a minha mulher para a biografia de Chávez falou dele como um homem muito calculista. Primeiro que tudo alguém persistente, que tinha tudo planificado. Que, mesmo quando parecia espontâneo, não o era. Era uma espécie de guionista muito inteligente, que se regia por uma ideia de espectáculo – e que transformou a política num grande espectáculo. Foi o primeiro presidente venezuelano nascido depois do aparecimento da televisão, e que teve com os media uma relação muito importante.

Como foi recebida a sua biografia na Venezuela?

É uma biografia não oficial, construída com muitas vozes, bem recebida. Chávez não gostou. Talvez porque tivemos acesso a um diário confessional, que nos foi dado por uma sua antiga amante, e que vai desde os 17 anos de Chávez aos vinte e poucos, quando estava na academia militar. A certa altura, quando descreve a passagem do presidente que mais tarde foi vítima do golpe de estado, Chávez diz – ainda sem ter chegado aos vinte anos: “Hoje vi passar o Presidente. Oxalá algum dia possa eu ter sobre os ombros o destino da pátria”.

Um dos maiores focos do livro incide na sacralização da doença de Chávez, com a realização de cultos e cerimónias públicas que pareciam vê-lo como um deus. Algo que conduziu a que de “Pátria ou morte” se tivesse passado para “Sejamos como Bolívar! Sejamos como Chávez!”. Chávez quis sair de cena como um deus e não como um homem?

O Chavismo funcionou como uma igreja, uma religião. Chávez agia e foi visto como um Messias, e o governo tratava-o assim. Em 2006 falava em salvar o planeta, as suas ideias eram messiânicas. De alguma forma tratou de sacralizar a sua doença, dizendo que havia falado com Deus. Um culto de personalidade que tem pontos de contacto com Fidel, com os seus ensinamentos, mas em Chávez isso ganhou uma projecção muito maior.

Aliás, um dos temas que atravessa o livro é a submissão de Venezuela a Cuba.

É impressionante, provavelmente um dos episódios históricos mais interessantes. Chávez ter-se-à fascinado com Fidel, e pensou que iria herdar o seu papel – e também o de Guevara – na América Latina.

A lei do arrendamento, onde o senhorio não consegue recuperar a casa a nãoser recorrer à invasão mais ou menos pacífica, parece algo arrancado ao território da ficção científica.

É uma das partes do livro de que mais gosto. Cinco mulheres fechadas numa casa, em disputa por ela, e todas têm razão. O problema aqui não é ser-se ou não Chavista, trata-se de um dilema moral. Alugar uma casa exige muita reflexão por parte dos futuros senhorios.

Rodrigo e Maria personificam uma nova e ainda incerta Venezuela, ou pelo menos o desejo do nascimento de um país diferente?

Sim, gosto muito que refira “incerta”. São duas crianças que escapam à realidade e que não sabem onde ir, apenas que têm de sair de onde estão. Em relação a um futuro que ainda não é muito claro. Pessoalmente, como venezuelano, sinto uma nova esperança.

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Pedro Miguel Silva

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