“Quando aceitei tanto o caos da história como o facto do meu fim total, vi-me livre para considerar como queria viver – em particular, como viver livremente neste corpo negro. É uma questão profunda, pois a América vê-se como obra de Deus, mas o corpo negro é a prova mais clara de que a América é a obra dos homens.”
O caos é a casa de um corpo negro. Um negro fica à mercê da compaixão dos brancos, em momentos de autoridade e, consequentemente, fatais. Nunca é o dono do seu próprio corpo, sempre vulnerável pelo poder alheio, pelo roubo da dignidade ou pela simples violência – de forma psicológica ou, na maioria das vezes, física – em que tudo é retirado. O assassinato de Michael Brown em agosto de 2014, um rapaz de 18 anos, por um polícia branco, Darren Wilson, é o evento catalisador da longa carta de Ta-Nehisi Coates dirigida ao filho neste “Entre Mim e o Mundo” (Ítaca, 2016), na intensa “questão de saber como se deve viver dentro de um corpo negro, dentro de um país perdido no Sonho”. A resposta à questão começou a ser dada na violência de Baltimore, até chegar a todo o tipo de livros e terminar na vivência familiar e numa derradeira entrevista, guardada para o último capítulo.
Dos valores que fazem os americanos – especialmente os cidadãos que acreditam ter pele branca – sentirem-se excepcionais, há um que esteve sempre presente e é, consequentemente, um dos fundadores da nação: a crença na diferença dos tons de pele e cabelo como um factor capaz de “organizar correctamente uma sociedade e que designam atributos mais profundos que não são indeléveis”. Este povo, centrado na ascensão de todos os que pensam serem brancos, não se estrutura por qualquer tipo de fisiologia ou genealogia mas pela hierarquia. Tal como escreve Coates, o triunfo da crença em ser-se branco provém do roubo da vida humana, da liberdade, do trabalho e das terras. Chicoteia-se as costas, acorrentam-se braços e pernas e destroem-se famílias para se provar a superioridade branca. E é com esta fatal introdução que começa uma extensa carta dirigido ao filho adolescente, separado por diferentes gerações, novas plataformas informativas e novos métodos de segurança.
Se não existiam palavras capazes de descreverem a mais pura das violências, a discriminatória, Coates utiliza o fio narrativo da sua vida para contar a história do povo negro perante o Sonho Americano. Uma brutalidade a começar nas ruas da sua terra natal, em que ser negro era “como estar nu diante de todas as armas, punhos, facas, crack, violações e doenças”, e sem dar hipótese a qualquer tipo de esperança a descrever os brutais assassinatos às mãos de diversos policias – a suposta força máxima de segurança da população. Tudo começava nas ruas, em que a falha de um membro era apanhada pelos gangues e, tal como o escritor descreve, o corpo era reclamado. Mais tarde, graças a um sistema educativo tão incompetente na formação de seres humanos, os mais fracos eram lançados para as mesmas ruas que os brutalizavam (“Esquece as intenções. As intenções de qualquer instituição ou dos seus agentes em relação a ti são secundárias. O nosso mundo é físico.”).
Indo contra as intenções de salvação do sistema através da educação, foi nos livros e na Universidade Howard que o escritor encontrou as respostas às questões que lhe assaltavam a alma e, como seria de esperar, perguntas surgiram cada vez mais à medida que a sociedade evoluiu. O leitor mais leigo não consegue sentir a duração das verdadeiras mudanças de qualquer História a nível mundial. Gerações terminam, com a esperança de deixarem um legado de confiança aos primogénitos, sem sentirem as verdadeiras mudanças pelas quais lutaram e, de certa forma, vêem as suas expectativas falhadas. “Entre Mim e o Mundo” analisa, explora e detalha cada pormenor do passado para não falhar no futuro. É uma carta reveladora da violência sofrida pelas gerações passadas – como a do escritor, um adulto marcado pela infância marcada pela preocupação e pelos códigos de rua em Baltimore – e para prevenir a vida dos que se seguem, como a do filho. (“Amo-te a ti e amo o mundo, e amo-o mais a cada nova polegada que descubro. Mas tu és um rapaz negro e tens de ser responsável pelo teu corpo de uma maneira que outros rapazes não podem conhecer.”)
Tal como Toni Morrison afirmou, numa conversa sobre arte e justiça social em Nova Iorque em Junho, todo o tipo de arte é perigosa e é necessário, para o ser humano, estar ciente disto antes de qualquer jornada. “Entre Mim e o Mundo” é um toque perigoso no que há de mais violento na condição de afro-americano e, no fundo, de ser humano. É sem dúvida um dos grandes livros do ano: Coates trouxe uma das melhores reflexões sobre o racismo.
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