Primeiro romance de Rute Simões Ribeiro, “Ensaio sobre o Dever (ou a Manifestação da Vontade” (Publicação Independente, 2017), finalista do prémio LeYa 2015, é um livro absolutamente singular e inquietante, escrito com grande conhecimento das questões jurídicas e políticas nele retratadas e que o leitor terá dificuldade em arrumar dentro de um determinado género literário.
A autora, dominando muito bem a língua portuguesa, escreve – com um apurado sentido de humor e uma verve sarcástica – uma história com uma temática surpreendente e até bastante difícil, que em nada é linear. Aliás, a autora tem um estilo particular onde faz interpelações directas ao leitor: “(,,,) como verá mais adiante o leitor, se connosco ficar, a isso o convidamos”, “esperando ter a companhia do estimado leitor” ,“(…)devo adiantá-lo, que só voltaremos a ver este homem muito mais tarde” ou “(…) perdoe-me estimado leitor, talvez não devesse antecipar-me”.
Sendo jurista, Rute Simões Ribeiro trata competentemente questões multifacetadas, tão pertinentes e ínsitas ao ser humano como a liberdade, a igualdade, a autodeterminação pessoal, as imposições, a invasão da privacidade, os direitos humanos, os limites dos poderes de representação da classe politica, o estado de direito, a mistificação das decisões politicas, a actividade parlamentar, a atividade judiciária, a cidadania, a actuação cívica, o interesse colectivo, o interesse individual ou a segurança constitucional de um estado. Sim, estado sempre com letra minúscula, aliás tal como primeiro-ministro, presidente da nação, conselho de ministros (e também a resolução numero trinta e sete do conselho ministros), governo, etecetera. Este uso sistemático das letras minúsculas torna-se um aliciante suplementar à leitura, e a estudada leveza filosófica com que Rute Simões Ribeiro escreve mostra a igualdade dos homens com cargos políticos ou detentores de órgãos de soberania com o cidadão comum da nação que, individualmente, também ele, tem de fazer uma escolha absolutamente devastadora da sua vida: “dos cinco sentidos que o corpo humano tem, os cidadãos maiores de idade apenas podem ficar a viver com um”.
Nunca a autora define quem é a entidade que obriga os cidadãos a tomar esta decisão – chama-lhe, a dado passo, “autor inidentificável, inalcançável da bizarra mensagem” ou “comunicado anónimo do além”-, ou oferece ao leitor personagens propriamente ditas pessoalmente caracterizadas (apenas o esboçado retrato interior de um primeiro-ministro, de um guerrilheiro da liberdade e de uma mãe), mantendo assim um estimulante mistério sobre o enredo mas, também, propiciando ao leitor abordagens psicológicas importantes sobre esta difícil instituição de uma nova “ordem de sentidos”. Todo o livro é uma grande metáfora sobre a força da cidadania e a organização politica e social de um país.
Neste novo mundo apenas com um sentido individual, os cidadãos encontram uma maneira de superar a falta dos outros sentidos, o que conduz à espontânea interajuda e organização entre todos (como o primeiro-ministro presenciou na viagem de autocarro, feita incognitamente, entre os restantes cidadãos).
No que respeita aos serviços do estado de direito, a autora caracteriza forma sarcástica a assembleia da república, agora com todos deputados “só com um sentido”, (todos os deputados haviam escolhido o sentido da visão), o que faz do capítulo 14 uma saborosa e prazenteira leitura. Quanto ao capítulo dedicado ao novo modo de funcionamento dos tribunais (capitulo 15), com a “domiciliação dos sentidos da justiça” e a existência de um advogado que tinha apenas “o sentido do paladar”, é hilariante.
“Ensaio sobre o Dever (ou a Manifestação da Vontade” encerra uma importante homenagem aos cidadãos (portugueses?) suficientemente valerosos, capazes de lograr uma nova forma de estar, com estabilidade social, numa espécie de fraternidade sensorial inclusiva no apuramento de cada sentido. Uma obra muito interessante e original, altamente merecedora de aplauso e reconhecimento.
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