Em “Enquanto uma fina neve cai” (Guerra & Paz, 2019) estamos perante uma reunião de 33 poemas da obra de Howard Altmann, numa edição bilingue com tradução de Eugénia de Vasconcellos.
Howard Altmann nasceu em Montreal, no Canadá, estudou Economia e Finanças, na Universidade McGill e na Universidade Stanford e, actualmente, vive em Nova Iorque. Após ter sido analista de 1986 a 1989, e vice-presidente de uma companha nova-iorquina de investimento imobiliário em 1990, dedicou-se à poesia, com poemas publicados nos mais variados espaços. O autor ensinou poesia a mulheres prisioneiras em Manhattan e ainda escreveu contos e peças para crianças.
Altmann, dito apaixonado por Portugal e pelo Brasil, espelha este apego na existência de poemas como “Saudade” ou “Lisboa”. Em “Ilha”, por exemplo, temos na sua versão original a palavra portuguesa “vistas” para acentuar a flama. Em “Saudade”, sentimo-nos em casa também: “Portugal está a comer bolos”, “Portugal está a comer bacalhau”… “Portugal está a comer tristeza”.
A tradução é especialmente controvertível. Francamente, a tradução poética sempre o é – tende à impalpabilidade do racional daquele que a aprecia. A começar pelo título em si (a versão portuguesa não demonstra a continuidade que o “keeps” inglês exige), a continuar com “who is darkness to another man/turning off a light” para “este é a escuridão para outro homem,/o que apaga a luz” (não entendemos o “o que” que corta a progressão do intuito estilístico do sujeito poético), a prosseguir com a pontuação destruidora (vírgulas onde estas não existem no original e se mostram absolutamente desnecessárias ou pontos finais onde o autor pede vírgulas), a derrapar em palavras que se aparentam simuladas como “It is the fog/ tired of being” para “É o nevoeiro/ cansado de pairar” (não antevemos justificação concebível), a terminar com a usurpação de uma anáfora absolutamente crucial para a ideia do “Gaivotas” (“only a body of the unspoken;/ the unspoken.” para “é apenas o corpo do não dito;/ o impronunciável) e incontáveis outras referências passíveis de serem enumeradas. Não confiamos de todo nesta tradução, porque nos traz comichões… das inconvenientes para o nariz, que fazem espirrar e são propícias à produção de muco verde com projecção exterior. Infelizmente, não estamos perante um livro que se adeque a quem não sabe a língua inglesa. Teremos, todavia, de citar, aqui, a versão portuguesa.
Não identificamos modelo quanto ao esquema rimático, quanto ao número de estrofes ou versos, nem quanto a características de identificação de estilo próprio em geral (em momentos os versos começam com letra maiúscula, noutros não; por vezes a ideia num verso termina no início do outro, noutros versos temos um derradeiro ponto final). Em toda a obra reina ritmo, num movimento fluído, vagaroso, mas ondulante. O uso de recursos expressivos é evidente, nomeadamente com a utilização da anáfora (em “Gaivotas”, numa espécie de “mantra”), do símbolo (arquétipos que aludem à vida no seu estado natural, como “não se pode negar a importância do céu”), da alegoria (como em “só quero comer morangos/ nos teus lençóis brancos”) e da repetição (que não induz a tautologia, mas a progressão – uma reincidência para a frente – como em “o homem que lê à luz é luz/ para o homem que caminha no escuro”).
O sujeito poético é um mistério. Primeiro, não sabemos se se dirige a ninguém, a todos, à mãe ou “a ela” (uns para um, e outros para dois). Segundo, tem por vezes uma identidade caótica dentro de um mesmo poema (“Sou a mulher velha na cidade velha, (…)”, “Em tempos fui um homem numa cidade de homens (…)”, mas “Nenhum diz a verdade, claro, (…)”). Terceiro, transmite uma impossibilidade de análise do seu estado de espírito preponderante e do seu padrão emocional de existência, porque abraça uma exposição imparcial do que, na verdade, não o é: fala da tristeza de forma crua, mas não mostra mesmo senti-la, porque suprime a perturbação com sorrisos lexicais. Demonstra franqueza na indiferença quanto ao desconhecimento que inicialmente parece doer-lhe (“Mesmo com esta idade/ Continuo à espera/ Que a evidência se apresente.”). Adoramos este mistério paradoxal. Parece um paradoxo, mas é em paradoxo que o autor escreve também. Os poemas demonstram encontrar-se num panorama binomial – isto é, vivem enquanto inúmeros ensejos de um relacionar contraditório. Contradições cruas, mas reais, que fazem sentido no seu absurdo: “É verdade que nada parece mudar./ E que tudo parece mudar./ E que isto não é um paradoxo também é verdade”. Contradições “qual quê”: “Em toda a história, palavras”… são sempre palavras… e “as definições destroem-nos”. Siddharta também prefere a coisa à palavra, a acção ao discurso e o viver ao falar – como tal, um não às definições e um brindar aos sentimentos mesclados contraditórios que fazem sentido!
O autor é especial a consolidar ideias em declarações paradigmáticas ou afirmações em forma de máxima, nomeadamente no poema “A manter a Postura” relativo à ideia de “história” ou em “A Barrar com o Chocolate” com “Pega na tua tristeza e põe-na/ naquele frasco de doce vazio que guardas.”.
A sensação que temos é a de agarrarmos um fio, que tem pés e cabeça, atendendo a que o sujeito poético parece tendencialmente racional (“Quando nasce o dia/ barco e lago são dois;/ mulher e Lua são uma.”). No entanto, demonstra ser um fio condutor muito específico, porque circular. Estamos sempre a navegar em círculos, numa circularidade que parece progredir, mas acaba também por retornar. Tal Rainer Maria Rilke que vive a sua vida em círculos crescentes, todos nós vivemos num andar orbicular também. Estes são poemas que efluem da nossa crua realidade: poemas tautócronos ao poema que é a vida.
Aconselha-se a leitura de “Enquanto uma fina neve cai” a quem quer aceitar que as contradições interiores são plausíveis, a quem vive pragmático uma vida cheia de sentimento e a quem não exige perpetuamente um pensamento elaborado dos demais.
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