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Encruzilhadas, Jonathan Franzen, D. Quixote, Dom Quixote, Deus Me Livro, Crítica
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“Encruzilhadas” | Jonathan Franzen

Por Pedro Miguel Silva · Em 25/03/2022

“Correcções” em, como diria Rui Reininho e os seus GNR, “edição revista e aumentada“. Uma forma algo simplista de condensar “Encruzilhadas” (D. Quixote, 2021), o mais recente romance assinado por Jonathan Franzen, que tão bem tem espremido o universo familiar para nos oferecer a sua visão política e social da sociedade norte-americana contemporânea. Agora, é à religião que cabe ocupar o centro do palco, que para cenário escolheu uma fotografia algo esbatida da Guerra do Vietname.

O ano é o de 1971, que não parece ser de todo favorável à família Hildebrandt. Russ, o chefe do clã, é pastor adjunto numa igreja suburbana de Chicago, e não tem mãos a medir para tanto desconsolo. A juntar a um casamento que parece estar pelas costuras, vai-se perdendo de amores por Mr. Frances Cotrell, agora viúva, que entra no jogo de lenta sedução e, pelo meio, até o desafia para fumar erva. Não há assim tanto tempo – três anos, mais precisamente -, Russ sofreu uma tremenda humilhação, algo que lhe valeu o aumento da quota de visitas pastorais e o ter de jogar, relativamente à relação com os fiéis, na Liga Europa. Na Champions joga agora Rick Ambrose, uns bons anos mais novo, que estabeleceu com os jovens uma relação de proximidade da qual Russ sente uma inveja danada. Através deles – ou partindo deles -, Franzen mostra-nos duas gerações americanas em rota de colisão.

Como sempre, Franzen dá corpo e voz a cada personagem, trazendo-nos o seu mundo interior, permitindo-nos conhecê-las à medida que os holofotes vão apontando para outras vidas que não as suas. Marion – a mulher de Russ -, por exemplo, tem também uma vida secreta. Ela que, apesar de ter vivido grande parte da sua vida sob a sombra de uma cruz, acredita em Deus mas não na ressurreição dos mortos de Jesus, vivendo com a culpa e o pecado e tendo na psiquiatra a única – e paga – amiga.

Clem, o filho mais velho – que não é religioso mas tem Jesus como modelo -, abandona a universidade e um caso amoroso inflamado de desejo patriótico, escondendo dessa forma a sua falta de empenho para os estudos. Era ele a estrela pela qual Becky, a irmã, se guiava, dele se sentindo próxima “de uma maneira quase conjugal que talvez não fosse salutar”. Becky é quem opera, aqui, a maior transformação, fazendo o percurso inverso da borboleta, arrumando com o tempo em que havia sido a inquestionável rainha da sua escola. Quanto a Perry, o mais novo e menos emocional dos irmãos, está resolvido a tornar-se uma pessoa melhor, após ter andado a juntar algum dinheiro vendendo droga aos alunos do 7º ano. O que não vai ser fácil, uma vez que para ele “a bondade é uma função inversa da inteligência”, e a alma algo que muda de cada vez que lhe surge uma revelação.

Encruzilhadas, título escolhido na tradução portuguesa, refere-se ao original Crossroads. Palavra que, no livro, corresponde – numa linha mais literal – ao nome do grupo de jovens da congregação,  sacado a uma canção de Robert Johnson – celebrizada mais tarde pelos Cream. Crossroads é, porém, o lugar onde está encravada a América, país a braços com uma crise moral e uma revolução nascidas com uma guerra jogada a milhares de quilómetros. Mas é também, e talvez sobretudo isso, o lugar exacto onde Franzen coloca cada uma das personagens que, ao se depararem com uma situação-limite e lidando com os seus dilemas, irão escolher os seus próprios caminhos, precisamente naquele “momento em que o passado e o presente se uniram”.

Encruzilhadas, Jonathan Franzen, D. Quixote, Dom Quixote, Deus Me Livro, CríticaPara além de aflorar – ligeiramente – a guerra do Vietname, Franzen sente o peso que a religião desempenha na vida de cada um, que vai tratando de arranjar formas de contornar um rígido código moral, professando uma fé na qual a melancolia, a tristeza e a dor são, não raras vezes, sentimentos dominantes: “Nos capítulos centrais do Evangelho havia multidões que seguiam Jesus para toda a parte, juntando-se à sua volta no Monte, recebendo peixe e pão aos cinco mil e aos quatro mil, acolhendo-o com ramos de palmeira à entrada de Jerusalém, mas nos capítulos finais a ênfase restringia-se a cenas de partida individual, de dor individual. A Última Ceia: clandestina e assombrada pela morte. Pedro sozinho com as suas traições. Judas partindo para se enforcar. Jesus sentindo-se abandonado na cruz. Maria Madalena a chorar junto da sepultura. As multidões tinham dispersado e tudo terminara. O pior da história humana acontecera com revoltante rapidez, e agora era outra manhã de domingo na Judeia, o primeiro dia da semana judaica, uma manhã de primavera peculiar, com um cheiro peculiar a primavera no ar. Até a verdade revelada nessa manhã – a verdade da divindade e ressurreição de Cristo – era austera na sua transcendência de peculiaridade humana, à sua maneira não menos melancólica. Para Russ, a primavera era mais uma estação de perda que de alegria”.

Discute-se sobre heranças familiares; sonha-se com ter nascido noutro tempo que não o nosso; sobrevive-se na tramada instituição familiar; escolhe-se, perante as encruzilhadas da vida, o caminho a tomar. Jonathan Franzen did it again, apetece dizer.

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Pedro Miguel Silva

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