Quando um incêndio destrói a sala de estar da casa de Helena, uma viúva de 79 anos, os descendentes e respectivos cônjuges encaram o acidente como um sinal de demência. Todo o comportamento recente da senhora, bem como o que é observado durante o alojamento temporário nas casas dos filhos, é interpretado à luz dessa suspeita, até ao momento em que uma descoberta surpreendente leva a idosa de aspecto frágil a revelar um segredo tão perturbador quanto o espectro de um distúrbio mental grave: dentro da personagem de velhota surda e distraída, desenvolvida para preservar a paz familiar, habita uma alma cuja insaciável sede de viver inclui uma fortíssima componente sexual.
Eis a premissa do mais recente livro de Filipa Fonseca Silva, “E Se Eu Morrer Amanhã?” (Suma de Letras, 2023), que satiriza, de forma hilariante, os preconceitos em relação à terceira idade, ao mesmo tempo que reconstitui o percurso motivador de alguém que decidiu que nunca seria tarde para procurar a felicidade.
Esta é a história de uma mulher que, na sua juventude, achava possível vir a ter um destino diferente do de outras raparigas da sua geração e realizar quase todos os seus sonhos de liberdade, mas viu-se traída por um conluio entre a sua família e um pretendente. Após 46 anos de casamento com um homem conservador, educado para o papel de chefe de família tradicional, “que manda e desmanda, que decide e impõe”, esperando da mulher “que fosse uma esposa recatada, uma mãe extremosa, nunca uma amante e muito menos alguém que almejasse sentir prazer”, renasce à beira dos 70 anos, após a morte dele. Com os filhos já criados e autónomos, livre de obrigações e saudável para a idade, envereda pela exploração de possibilidades até então interditas, recuperando pelo caminho a alegria de viver e descobrindo que ainda é desejável.
Além de nos proporcionar diversão à custa dos tabus sexuais e dos estereótipos acerca das pessoas mais velhas, Filipa Fonseca Silva lança farpas certeiras a uma série de outras questões actuais, tais como a persistente desigualdade social entre homens e mulheres, a desorientação dos jovens adultos que não sabem o que fazer da vida, o turbilhão tão sedutor quanto esmagador das redes sociais, a gentrificação da capital e a obstinação terapêutica, que sacrifica a qualidade de vida à longevidade.
As agruras do envelhecimento não são escamoteadas – “a velhice é um lugar escuro”, afirma a dada altura a protagonista – e a autora resiste à tentação de fazer de Helena uma entidade perfeita e imune a todos os preconceitos – os termos em que, numa curta frase, se refere à bissexualidade podem ser considerados ofensivos –, mas a sua coragem de desafiar expectativas generalizadas para desfrutar ao máximo de todos os prazeres que a vida ainda lhe pode oferecer, em vez de se deixar dominar pela angústia do eminente fim da viagem, é realmente luminosa.
Sem Comentários