Tem sido um dos mais improváveis projectos literários de anos recentes, capaz de recriar o classicismo de um mestre à luz dos tempos modernos – e de acordo com a escrita muito própria de quem concordou em embarcar nesta aventura literária.
Iniciado pela Hogarth, uma casa editorial inglesa, a colecção que convida escritores modernos a revisitar Shakespeare quatro séculos depois – e que em Portugal recebeu o nome de Bertrand Shakespeare –, teve o seu primeiro lançamento nas livrarias nacionais com “Shylock é o meu nome” (Bertrand, 2017), onde o britânico Howard Jacobson partiu da peça “O Mercador de Veneza”. Seguiram-se “Otelo” – recontado por Tracy Chevalier em “O novo aluno” – “A Fera Amansada” – recontado por Anne Tyler em “Amarga como vinagre“-, “Semente de Bruxa” (Bertrand, 2018), da canadiana Margaret Atwood, uma fantástica recriação de “A Tempestade”, e “McBeth”, um policial noir com o dedo de Jo Nesbo.
O mais recente capítulo da colecção foi acrescentado por Edward St Aubyn, autor da incrível saga Melrose, um autor com uma escrita que mistura o charme com a mais glacial implacabilidade. “Dunbar e as suas filhas” (Bertrand, 2019) recria de forma exemplar “O Rei Lear”, provavelmente a mais negra das tragédias de Shakespeare, num cenário moderno onde Lear é, aqui, Henry Dunbar, o em tempos todo-poderoso dirigente de um quase monopolista grupo global de comunicações, que com o aproximar da velhice foi entregando o poder às suas duas filhas mais velhas, Abby – uma gestora de crises – e Megan – uma ninfomaníaca com toques de crueldade -, enquanto a relação com a sua filha mais nova – e a sua preferida – entrou em modo de guerra fria.
Enclausurado numa muito chique casa de repouso da Inglaterra rural – ou, como o próprio a descreve, uma “cela de alta qualidade” -, Dunbar tem como companhia um algo pseudo artista alcoólico e louco, que ainda assim o ajudará a fugir depois de Dunbar perceber o esquema das duas filhas mais velhas, que basicamente passa por afundar a empresa, receber uma nota preta e condenar o pai ao vegetalismo.
Pegando no bisturi temporal, St Aubyn faz uma incisão profunda na agonia da vida familiar, que quatro séculos depois continua a ser um sonho cor-de-rosa para a psiquiatria. Uma tragédia à moda Shakespeariana convertida numa mais moderna versão 2.0.
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