Há um século atrás, após a época de horror e destruição ditada pelo conflito mundial, a ruína da economia e a crise de valores, seguiram-se os “loucos anos 20”, uma fase de recuperação, prosperidade e abundância, impulsionada pelas novas indústrias e pelas novas tecnologias. Acessível às classes médias, surge um novo estilo de vida: a liberalização de costumes. Uma nova vivência nas cidades, não apenas voltada para o trabalho mas, também, para os divertimentos nocturnos; uma nova conquista do espaço geográfico, com o automóvel; e, claro, com a mulher a chegar a espaços até aí só permitidos aos homens.
À data, Paris disputava o lugar de capital da agitação, da vanguarda e da audácia, repleta de artistas, escritores, pintores, aristocratas sem reino, ricos ociosos. É neste contexto que os personagens de Iréne Némirovsky se movimentam em “Dois” (E-Primatur, 2023), muitos dos quais jovens, herdeiros ricos, descendentes de artistas, sedutores, inconstantes e egocêntricos. As relações surgem envoltas em sentimentos desiguais e pouco recíprocos, umas liberais, por vezes extraconjugais, outras assentes nas aparências, vínculos forjados na hipocrisia e no constrangimento.
É exactamente nesta Paris que gravitam famílias, em torno de uma sociedade na qual os padrões de vida se haviam alterarado. Era a era dos cabarets, das casas de chá e dos clubes, da moda feminina, de um maior reconhecimento do poder feminino, atribuindo-lhe o direito à sedução e ao prazer, o poder subtil das mulheres, em família ou como amantes.
Através de Marianne e Antoine, Solange, Dominique e Gilber, Irene Némirovsky retrata de forma exímia a pressa da juventude e a sua ilusão de conseguir escolher e conduzir a vida à velocidade vertiginosa de uma corrida. Jovens adultos, todos passam pela transformação do enamoramento e do desejo pela acomodação e o lusco-fusco de uma existência sem flashes. Algum tempo depois, casados e instalados na sociedade, experienciam igualmente a decepção das relações familiares estagnadas pelas convenções. Numa família diferenciada, os laços e os afectos revelam-se diferentes e providos de nuances de sedução e de dureza, ditadas pela estratificação social, pelas preferências entre iguais e pelos estereótipos de género. Desprezo, crueldade e sofrimento surgem como prazeres secretos, presentes nos perigosos jogos de sedução. A narrativa é extremamente pictórica, rica em detalhes, na descrição dos espaços, das roupas e dos comportamentos, permitindo uma viagem à época.
“O amor é frequentemente apenas a lembrança de um momento de amor.”
Retratando a vida de duas grandes famílias, as máscaras do casamento, a vida de aparência, as expectativas de fidelidade e de perfeição, a extinção da paixão e a cumplicidade que preserva a existência, é demonstrada a forma como a preservação das relações se faz com recurso a segredos recônditos e a mentiras complacentes. Ao medo da descoberta, prefere-se a negação da evidência e a salvaguarda da mentira, porque se acredita que silenciar ciúmes com compaixão e complacência apagará o pior, como se apaga um candeeiro.
“Todo o amor humano deve ser alimentado de paixão, a fim de subsistir; quando a paixão se extingue, requer palavras de ódio, acções hostis, tudo o que ainda é movimento, calor, chama no coração dos conjuges”.
Irène Némirovsky nasceu em Kiev no ano de 1903, então parte do Império Russo, no seio de uma família abastada. Com a chegada da Revolução Russa, a família decide fugir do Exército Vermelho, fazendo escala na Finlândia antes de se instalar definitivamente em Paris. “David Golder”, o primeiro romance assinado por Némirovsky (1929), teve reconhecimento imediato, tendo sido adaptado ao cinema um ano após a sua publicação. Um sucesso que continuou com os livros seguintes, mas que foi interrompido com a chegada da guerra a França, reflexo da sua ascendência judia, algo que resultou na proibição da venda dos seus livros. Em 1942, foi detida e deportada pelo governo colaboracionista de Vichi, para o campo de concentração de Auschwitz, lugar onde viria a morrer com apenas trinta e nove anos. A recuperação internacional da obra de Irène Némirovsky deu-se em 2004, com a publicação do até então desconhecido e inacabado “Suite Francesa”, romance que viria a receber um póstumo Prémio Renaudot.
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