Por mais voltas e voltas que queiramos dar ao texto, seria difícil encontrar uma expressão mais adequada para caracterizar a mesa intitulada “Nada acaba no fim” do que aquela arrancada a ferros à gíria futebolística: meter a carne toda no assador. Entre autores nacionais e estrangeiros, o peso era tanto que só por milagre a mesa e o palco não caíram: Afonso Cruz, José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe, Héctor Abad Faciolince, Fernando Iwasaki e Onésimo Teotónio Almeida.
“Os livros não acabam no fim, se acabassem seria nos leitores” – afirmou Afonso Cruz sobre o processo inacabado de se ser leitor, partindo para uma aventura histórica de onde foram ressuscitadas várias figuras e em que se falou do asco pelo corpo e a busca incessante pela imortalidade da alma. O escritor falou ainda das coisas que realmente prezamos como aquelas que têm um fim em si – o amor, a amizade -, e de como a visão poética do mundo pode alterar toda a concepção da morte ou, se quisermos, a ideia de fim: se alguns olhavam com asco para os órgãos pousados em travessas cercados por moscas famintas, por exemplo, o biólogo Claude Bernard disse qualquer coisa como “Estes fígados devem estar cheios de açúcar”, o que acabou por levá-lo à descoberta do glicogénio, algo tão fundamental para a medicina moderna. Ponto alto para a visão partilhada do sexo e dos livros, ambos tão necessários à muito honrada multiplicação.
José Luís Peixoto reafirmou a sua missão de lembrar aos leitores que a morte está a caminho, mesmo que um crítico de referência – palavras suas – tenha dito em tempos que não cabia à literatura relembrar constantemente a morte. Peixoto que falou do tempo como a matéria fundamental da Literatura, e do acto de escrever como a própria resistência ao tempo – algo nunca alcançado devido às múltiplas leituras e interpretações, variáveis consoante o leitor e a época. Ainda que tenha decidido pautar o seu discurso pelo negrume, terminou com uma saída politicamente correcta dizendo que a morte nos serve para lembrar de que estamos vivos, e que os dias em que o estamos são em bem maior número que aquele instante solitário em que tudo acaba (ou não, logo se verá).
Valter Hugo Mãe confessou que achou o tema da mesa muito mau, arrancando para a leitura de um texto – intercalada com comentários sempre a propósito – que falou de todas as dívidas que os escritores – e no seu caso muito particular – herdam dos seus leitores. Mestre na manipulação dos sentimentos e da alternância entre estados emocionais, Valter trouxe lágrimas e risos ao Cine-Teatro, entre juras de amor, perdas irreparáveis ou ameaças de trombas e focinhos partidos. “Não sou o mesmo homem de livro para livro”, como que dizendo que um novo escritor nasce a cada última página virada.
Héctor Abad Faciolince não teve propriamente uma relação fácil com a morte, com o assassínio do pai, médico e activista dos direitos humanos, morto numa rua de Medellín pelos paramilitares colombianos em 1987, algo reflectido no romance “Já somos o esquecimento que seremos” (edição pela Quetzal). Começando a sua intervenção relembrando a invenção dos finais felizes operada nos contos infantis, Hector falou também de outras histórias da literatura que tiveram o poder não terminar na morte – ou, pelo menos, de a prolongar -, como aconteceu em As Mil e Uma Noites, ou da ressurreição de Lázaro, que implicou que nunca se tivesse sabido quando terá realmente morrido – o que certamente terá acontecido.
Partindo da magia dos significados múltiplos da literatura e das palavras, Hector cruzou uma história pessoal com uma outra do seu filho, ambas tocadas pela proximidade da morte. Se no caso de Hector esta esteve presente quando foi atropelado por uma Vespa na Holanda, o seu filho esteve mais perto do túnel final após ter sido picado por uma vespa – descobriu-se aí a sua alergia -, salvo por uma injecção milagrosa. Uma intervenção muito bem conseguida sobre como a literatura, assim como a medicina, podem ir tratando de prolongar a mortalidade.
Seguiu-se uma talvez inesperada intervenção de Fernando Iwasaki – que tomou o lugar que seria de Luis Sepúlveda, que acabou por não estar presente -, que afirmou que enquanto existirem leitores – e essa sim será a maior ameaça – os livros não acabarão nunca. Seguiu-se um percurso através da história da Literatura e de como as mesmas personagens de certa forma se transfiguram no tempo e de acordo com o tempo dos leitores. Fantástica a imagem apresentada por Iwasaki dos dois tipos de livros que, para ele, são os livros-maiores: os livros-cidade – como “Cem anos de solidão” -, que têm dentro de si subúrbios, jardins museus e até farmácias, e outros que são livros-caminhos, e que se revelam mapas ou guias para que os leitores cheguem a outros livros e lugares – “A literatura é um mapa”, disse. Falou ainda das distopias míticas – “1984”, Admirável Mundo Novo” ou “Fharenheit 451” – onde os livros estavam ameaçados ou proibidos, e de como mais tarde, seja em “Blade Runner” ou em “The Walking Dead”, os livros sejam algo que não existe – afinal “os zombies não lêem”, brincou. E, referindo-se aos que trocaram a leitura pelas horas atrás de um ecrã luminoso, lembrou que o Trojan, vírus que muitas vezes bate à porta, é descendente de um cavalo de madeira e da mais bela literatura. “Acima de tudo leitores, eis o que somos”, rematou uma intervenção exemplar.
A mesa encerrou de forma sublime com o humor de Onésimo Teotónio Almeida, que levou a sala às lágrimas felizes ainda que tivesse começado com uma frase que indiciava poesia e sentimento: “Sou do tempo em que o arco-íris era a preto e branco”. Numa dissertação que teve como alma a ideia de que “nada acaba no fim, começa muito antes no princípio”, Onésimo falou dos sintomas do envelhecimento – que começa por trocar caras e nomes e passa depois por nos esquecermos de fechar a braguilha, a que se sucede o ainda mais perigoso esquecimento de a abrir -, numa conversa literária sobre decadência a que não faltou uma visita à política americana e à ideia de que, no momento da escolha, será sempre preferível votar numa vaca do que num monte de trampa. Por qui dizemos que nada acaba no fim, até porque as Correntes estarão de volta para o ano. Em breve publicaremos um texto de balanço e algumas das frases ditas nesta edição que poderiam ficar impressas num livro de recortes.
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