O que fariam se encontrassem Homero, à porta de um shopping, a devorar avidamente – provavelmente com uma boa dose de molho e especiarias – a sua Ilíada, qual sandes saída de um submarino americano? Esta foi uma das imagens invocadas por Ana Zanatti na mesa “Quando escolhemos mudamos o livro“, usando a metáfora visual de escolher e mudar as nuvens para ilustrar, também, a ideia de mudança inerente ao acto contínuo da escrita, até que esta se paralise numa versão impressa.
João Ricardo afirmou ter escrito um discurso bem posto mas que, seguindo à letra o tema proposto para a mesa, decidiu rasgá-lo para com isso se mudar a si próprio. Assumindo-se como alguém que escreve para a infância, apresentou um relato da experiência da mediação da leitura, ao mesmo tempo que propôs uma mudança nos ícones da literatura infanto-juvenil – algo como ver a Cinderela roer as unhas dos pés.
Andrés Barba foi uma das estrelas do dia, propondo uma viagem incrível a um dos seus livros – “Na presença de um palhaço” (Elsinore, 2015) – para, com isso, ilustrar o tema da mudança, e de como os títulos acabam (talvez de forma infeliz) por mudar o próprio livro bem como a sua essência. Barba falou da dificuldade e da agonia de escolher os títulos dos seus romances, falando de uma viagem que fez com a mulher às Américas onde, a cada frase que dela ouvia – tais como “ligou a tua mãe” ou qualquer coisa relacionado com o que iam comer – dava por si a repeti-las a ver se alguma delas serviria. Até que, de facto, uma delas acabou por servir: “Parou de chover”.
Com “Na presença de um palhaço”, porém, acabou por acontecer exactamente o contrário, uma vez que o título, roubado a um filme de Bergman, foi o rastilho que o fez escrever um livro sobre o humor, há muito adormecido na sua imaginação. Um livro que senta um manequim no parlamento, talvez para mostrar o ridículo a que a política muitas vezes conduz. Em cima da mesa esteve a experiência da coerência como ficção, onde cada livro, cada texto literário, faz compreender algo sobre a sua estrutura mas também sobre a vida própria do autor, e de como as decisões e mudanças pessoais podem mudar tudo. Assim como alguém que, ao escrever várias e abreviadas biografias sobre si próprio, espera encontrar nessa imperfeição uma vida completa.
A mesa com o curto título “Escrevo e depois” teve, como grande protagonista, o inimitável Mário Zambujal. “Eu não sou dois, eu sou o que escrevo”, afirmou o autor da eterna “Crónica dos Bons Malandros”, falando da sua escrita como um reflexo da oralidade e da influência da escrita jornalística na feitura dos seus romances. Sempre com o Vaticano como punch line humorística permanente, Zambujal deu show de bola,oferecendo pérolas como estas: “Pesquisa é trabalho. E a única coisa que me embaraça é o trabalho“.
Para Manuel Rui, a escrita representa “uma necessidade de falar comigo em silêncio, e que vai invadir o silêncio dos outros“. Algo como a busca do incompleto,do imperfeito, de escrever com palavras que não existem. Álvaro Magalhães, um dos grandes mestres da literatura infantil, disse que “se esta fosse um edifício deveria ter um porteiro que só deixasse entrar os poetas“, afirmando que o único compromisso que firmou com a vida foi o da imaginação. E que, como Pina o invocava, não existe literatura infantil. Apenas literatura.
O que se seguiu esteve para lá da vertigem, um pouco como aquela sensação de irmos a um concerto de música tão para lá de tudo que, ao chegar ao carro – e mesmo que com o espectro de uma longa viagem de regresso -, recusamos ligar o auto-rádio e preferimos a companhia do silêncio.
A conversa entre José Manuel Fajardo e Javier Cercas, toda ela em redor do romance de Cercas intitulado “O Impostor”, foi tudo aquilo que se pode esperar de um encontro que tem a literatura como ponto partida e chegada, ainda que esta última possa promover um não retorno.
Apresentando todo o enredo e a história real que deu origem à escrita deste livro – resumidamente alguém que se tornou célebre por ter sobrevivido a um campo de concentração mas que afinal nunca havia lá estado -, Cercas disse que o que o motiva no acto da escrita é sempre fazê-lo para entender algo o que, no caso de “O Impostor”, lhe levantou três questões pertinentes: Como é possível que alguém minta sobre o crime mais monstruoso da humanidade? Por que razão todo o mundo acreditou em Enric Marco? E por que motivo esta história mexeu tanto comigo?
Dizendo que o seu trajecto tem sido o de “escrever romances de aventuras sobre a aventura de escrever romances“, Cercas fez uma homenagem à Literatura mas sobretudo ao acto da escrita, desmontando o processo da criação, oferecendo todas as peças do puzzle ao leitor para, logo de seguida, o iludir com a perspectiva de que havia escrito apenas “uma novela sem ficção saturada de ficção“. Quanto a nós, mergulhámos de cabeça e sem botija de oxigénio nesta imensa impostura. Ao quarto dia tivemos Cercas e, só por isso, as Correntes podiam já lançar fogo-de-artifício.
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