“Um mistério“. Foi desta forma que Ana Sousa Dias, a suprema moderadora da mesa intitulada “Como fugir ao que foi escrito“, se referiu ao acto constante da criação literária, ladeada por David Toscana, Harrie Lemmens, João de Melo, João Felgar e Rui Vieira.
Começando por referir que “ninguém nasce escritor“, Rui Vieira disse que Balzac, Homero e Shakespeare haviam já escrito tudo sobre os mesmos assuntos, mas que, ainda assim, há sempre uma frase escrita – ou pilhada – algures, capaz de abrir uma nova dimensão ao acto da escrita. Afinal, o que já está escrito não é de ninguém e, se dantes haviam histórias de princesas esbeltas e príncipes com caras e corpos de sapos, cabe agora ao escritor falar das atrocidades da vida transformando-as, por um qualquer acto inexplicável, em literatura.
João Felgar, que se apresentou como um recente profissional da escrita, disse olhar a fuga ao que já foi escrito como a perda da espontaneidade, além de provavelmente conduzir a uma busca pelo insólito que, no seu caso, acabou por quase o conduzir aos ratos do convento de Mafra, travado felizmente – segundo o próprio – por uma editora muito zelosa. Para Felgar, os temas são dados ao escritor.
Ratos que, curiosamente, estão também no envelope de ideias para contar de João de Melo, que assumiu ter querido apagar do mapa os seus cinco primeiros livros, “obras de um rapazinho imaturo e incompetente“. Ele que, na busca de motivos exteriores a si e ao seu mundo mais próximo, acusou os autores latino-americanos de lhe terem roubado o universo da infância, escrevendo os livros que só ele próprio poderia ter escrito. Confessando o amor pelos mestres na iniciação à demanda de uma busca pelo estilo próprio, João de Melo terminou dizendo que “nunca fui além do gatinho das botas que afinal sofria de tonturas“. Gatinho que, recorde-se, levou para casa o Prémio Vergílio Ferreira este ano pela sua obra imensa.
Quanto a Harrie Lemmens, disse operar nas suas traduções um acto de transformação, inventando uma nova linguagem para assim chegar a um livro que, após a interpretação que os leitores dele fizerem, se transforme numa coisa viva, sobretudo no universo poético.
Já David Toscana considerou a fuga ao que já foi escrito como algo verdadeiramente pretensioso. Sendo impossível ao escritor fugir aos grande e pequenos temas, cabe-lhe confiar na variedade das palavras. Afinal, mais do que procurar a originalidade e a fuga ao que os outros escreveram – não é à toa que apenas uma vez se escreveu sobre alguém que adormece e no dia seguinte acorda transformado num insecto -, o importante será fugir aquilo que ele próprio escreveu.
“Escrevo o futuro ou escrevo para o futuro?” A resposta a esta mesa moderada por Henrique Cayatte foi dada por Matilde Campilho, Tiago Salazar, Lopito Feijó, José Manuel Fajardo e Fernando Perdigão.
Campilho declarou viver não mais que no presente, cabendo-lhe “encontrar a gema do agora“, fazendo da desordem de uma secretária um poema que capture o presente (e talvez algo mais que isso). Assim como uma pedra que guarda no bolso, feita de desejo e imaginação, capaz de desvendar aos outros o presente que nela se revela; Fajardo referiu-se ao futuro como “um jogo de miragem“, sendo o passado algo que vivemos e deixamos escapar de forma permanente, algo que obriga o escritor – e o leitor – a procurar referências, apontando a memória como a matéria-prima da escrita: “O passado não se explica, confere uma identidade“, enquanto “o futuro é uma antecipação da perda“. Ele que rematou com uma interrogação carregada de negrume: “Qual é o grande sonho colectivo que temos hoje como humanidade? O futuro já não é o que era“; Lopito Feijó, confessando-se um “aprendiz do poeta que conta histórias“, foi o retrato vivo de um tempo e espaço político e geográfico em que o autor escrevia para o futuro, incompreendido pelo seu tempo actual; Tiago Salazar, um escritor-viajante confesso, falou do tempo e dos tempos através das viagens, que se dantes eram feitas para fugir à guerra ou a outro algo são agora, para muitos, uma forma de (tentar) viver uma epifania.
Na mesa mais enigmática e propícia ao inesperado, intitulada “Escrevo o que quero escrever, nunca escrevo o que quero” – com moderação de Pedro Vieira -, Inês Pedrosa falou da Literatura como a arte que melhor resiste à massificação, discorrendo depois sobre a íntima relação entre política e romance a a necessidade de se pensar numa politica do romance. Para Pedrosa, a vocação da Literatura – e a do escritor – será a da “descoberta de um pensamento autónomo“; Julián Fuks disse ser “um escritor que não consegue inventar“, vendo-se apegado à realidade para a partir dela escrever os seus livros, pouco apegado ao sonho de escrever a obra imortal. Ele que desvendou um pouco da auto-ficção que está por trás de “A Resistência”; Manuel Jorge Marmelo falou na maravilha de não se ter certezas, e de encontrar o que se escreve ao olhar o pequeno grande mundo, como lhe chamou Samuel Úria no seu último disco. “Reconstruir o mundo adaptando-o às minhas inquietações e medos“, é sobre isto que Marmelo disse querer escrever; para Nuno Costa Santos existem “traços de biografia não resolvidos” que o escritor quer arrumar pela escrita, algo que vê, na falta de uma mão que escreva sozinha, como uma mistura entre uma dança livre de fantasmas e uma oficina de carpintaria, como provavelmente lhe chamaria Saramago. A festa das Correntes prossegue hoje e sábado naquilo que se antecipa como um grande fim-de-semana literário.
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