• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Mil Folhas 0

Diário mínimo das Correntes – dia 25

Por Pedro Miguel Silva · Em 26/02/2016

“Um mistério“. Foi desta forma que Ana Sousa Dias, a suprema moderadora da mesa intitulada “Como fugir ao que foi escrito“, se referiu ao acto constante da criação literária, ladeada por David Toscana, Harrie Lemmens, João de Melo, João Felgar e Rui Vieira.

Começando por referir que “ninguém nasce escritor“, Rui Vieira disse que Balzac, Homero e Shakespeare haviam já escrito tudo sobre os mesmos assuntos, mas que, ainda assim, há sempre uma frase escrita – ou pilhada – algures, capaz de abrir uma nova dimensão ao acto da escrita. Afinal, o que já está escrito não é de ninguém e, se dantes haviam histórias de princesas esbeltas e príncipes com caras e corpos de sapos, cabe agora ao escritor falar das atrocidades da vida transformando-as, por um qualquer acto inexplicável, em literatura.

João Felgar, que se apresentou como um recente profissional da escrita, disse olhar a fuga ao que já foi escrito como a perda da espontaneidade, além de provavelmente conduzir a uma busca pelo insólito que, no seu caso, acabou por quase o conduzir aos ratos do convento de Mafra, travado felizmente – segundo o próprio – por uma editora muito zelosa. Para Felgar, os temas são dados ao escritor.

IMG_8769

Ratos que, curiosamente, estão também no envelope de ideias para contar de João de Melo, que assumiu ter querido apagar do mapa os seus cinco primeiros livros, “obras de um rapazinho imaturo e incompetente“. Ele que, na busca de motivos exteriores a si e ao seu mundo mais próximo, acusou os autores latino-americanos de lhe terem roubado o universo da infância, escrevendo os livros que só ele próprio poderia ter escrito. Confessando o amor pelos mestres na iniciação à demanda de uma busca pelo estilo próprio, João de Melo terminou dizendo que “nunca fui além do gatinho das botas que afinal sofria de tonturas“. Gatinho que, recorde-se, levou para casa o Prémio Vergílio Ferreira este ano pela sua obra imensa.

Quanto a Harrie Lemmens, disse operar nas suas traduções um acto de transformação, inventando uma nova linguagem para assim chegar a um livro que, após a interpretação que os leitores dele fizerem, se transforme numa coisa viva, sobretudo no universo poético.

Já David Toscana considerou a fuga ao que já foi escrito como algo verdadeiramente pretensioso. Sendo impossível ao escritor fugir aos grande e pequenos temas, cabe-lhe confiar na variedade das palavras. Afinal, mais do que procurar a originalidade e a fuga ao que os outros escreveram – não é à toa que apenas uma vez se escreveu sobre alguém que adormece e no dia seguinte acorda transformado num insecto -, o importante será fugir aquilo que ele próprio escreveu.

IMG_8802

“Escrevo o futuro ou escrevo para o futuro?” A resposta a esta mesa moderada por Henrique Cayatte foi dada por Matilde Campilho, Tiago Salazar, Lopito Feijó, José Manuel Fajardo e Fernando Perdigão.

Campilho declarou viver não mais que no presente, cabendo-lhe “encontrar a gema do agora“, fazendo da desordem de uma secretária um poema que capture o presente (e talvez algo mais que isso). Assim como uma pedra que guarda no bolso, feita de desejo e imaginação, capaz de desvendar aos outros o presente que nela se revela;  Fajardo referiu-se ao futuro como “um jogo de miragem“, sendo o passado algo que vivemos e deixamos escapar de forma permanente, algo que obriga o escritor – e o leitor – a procurar referências, apontando a memória como a matéria-prima da escrita: “O passado não se explica, confere uma identidade“, enquanto “o futuro é uma antecipação da perda“. Ele que rematou com uma interrogação carregada de negrume: “Qual é o grande sonho colectivo que temos hoje como humanidade? O futuro já não é o que era“; Lopito Feijó, confessando-se um “aprendiz do poeta que conta histórias“, foi o retrato vivo de um tempo e espaço político e geográfico em que o autor escrevia para o futuro, incompreendido pelo seu tempo actual; Tiago Salazar, um escritor-viajante confesso, falou do tempo e dos tempos através das viagens, que se dantes eram feitas para fugir à guerra ou a outro algo são agora, para muitos, uma forma de (tentar) viver uma epifania.

IMG_8824

Na mesa mais enigmática e propícia ao inesperado, intitulada “Escrevo o que quero escrever, nunca escrevo o que quero” – com moderação de Pedro Vieira -, Inês Pedrosa falou da Literatura como a arte que melhor resiste à massificação, discorrendo depois sobre a íntima relação entre política e romance a a necessidade de se pensar numa politica do romance. Para Pedrosa, a vocação da Literatura – e a do escritor – será a da “descoberta de um pensamento autónomo“; Julián Fuks disse ser “um escritor que não consegue inventar“, vendo-se apegado à realidade para a partir dela escrever os seus livros, pouco apegado ao sonho de escrever a obra imortal. Ele que desvendou um pouco da auto-ficção que está por trás de “A Resistência”; Manuel Jorge Marmelo falou na maravilha de não se ter certezas, e de encontrar o que se escreve ao olhar o pequeno grande mundo, como lhe chamou Samuel Úria no seu último disco. “Reconstruir o mundo adaptando-o às minhas inquietações e medos“, é sobre isto que Marmelo disse querer escrever; para Nuno Costa Santos existem “traços de biografia não resolvidos” que o escritor quer arrumar pela escrita, algo que vê, na falta de uma mão que escreva sozinha, como uma mistura entre uma dança livre de fantasmas e uma oficina de carpintaria, como provavelmente lhe chamaria Saramago. A festa das Correntes prossegue hoje e sábado naquilo que se antecipa como um grande fim-de-semana literário.

Correntes d`EscritasCorrentes d`Escritas 2016

Pedro Miguel Silva

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
  • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

    “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

    30/04/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto