As lojas estavam fechadas. Cruzes vermelhas marcavam as portas das casa contaminadas e nos letreiros lia-se “Que Deus tenha piedade de nós”. Nas ruas, corpos jaziam no chão. Por entre gritos de terror e lamentações, soava a campainha que precedia a chegada da carreta dos mortos, cujo propósito era recolher o maior número de os cadáveres possível, para mais tarde os depositar em valas profundas.
“Diário do Ano da Peste” (PIM! Edições, 2020) está pejado de episódios lúgubres, peripécias insólitas e cenas comoventes que descrevem o modo como a peste assolou os bairros de Londres entre 1665 e 1666. Apesar do engenho literário com o qual Daniel Defoe constrói a narrativa, este livro é, acima de tudo, um documento de referência, dado o seu incalculável valor histórico. Defoe publicou o “Diário do Ano da Peste” em 1722, meio século depois dos eventos descritos na crónica. Ao que parece, o criador de “Robinson Crusoe” ter-se-à baseado no diário do seu tio Henry Foe para compor a obra, sendo que Daniel teria aproximadamente 5 anos de idade quando a última epidemia de peste bubónica ocorreu em Inglaterra. A Grande Peste de Londres de 1665, como ficou conhecido o surto, durou 18 meses, e estima-se que tenha vitimado cerca de 100 mil pessoas, aproximadamente um quarto da população londrina na altura.
Mas quem diria que, em 2020, annus horribilis da nossa geração, estaríamos a comparar as correntes medidas profiláticas e estratégias de isolamento com um texto do século XVIII? À primeira vista, pela doença em si não será, já que a COVID-19 e a Peste Negra têm, do ponto de vista médico, pouco em comum, embora sejam ambas perigosas. De acordo com o prefaciador Rui Tavares, o leitor contemporâneo de Diário do Ano da Peste “é inevitavelmente atraído pelas semelhanças entre as circunstâncias do protagonista e dos seus próximos e as nossas próprias circunstâncias”, sugerindo que, à luz da actual conjuntura pandémica, as nossas convicções, medos, desejos e conduta social pouco ou nada se alteraram.
Conta-nos Defoe que, de modo a estancar a pestilência, as autoridades inglesas implementaram um conjunto de medidas que nos são manifestamente familiares, senão vejamos: espectáculos, enterros sociais, bares, tabernas e outros ajuntamentos foram proibidos; implementaram-se normas com vista à restrição da mobilidade dos cidadãos; procedeu-se à higienização de casas e espaços públicos; confinamento obrigatório para doentes e familiares. Segundo o autor, “a confusão era grande”: os pareceres médicos contradiziam-se e os boletins de mortalidade nem sempre forneciam cifras exactas. Para além disso, “numerosas declarações falsas sobre a doença contribuíram fortemente para a difusão da epidemia” — espante-se quem pensava que na Inglaterra seiscentista não se plantavam fake news.
Nos mercados, os comerciantes e clientes recusavam-se a pegar em dinheiro sem primeiro o desinfectar, tal era o pavor, e “muita gente trazia consigo frascos de sais e de perfumes”, os quais faziam as vezes do nosso álcool-gel. Estando o Zoom, WhatsApp e o teletrabalho fora da equação, a necessidade de evitar o contacto com o próximo, aliada ao desemprego e à miséria provocados pela peste, criaram inevitavelmente um clima de desconfiança generalizada, que reinava entre estranhos e parceiros.
Num texto em que excertos da sagrada escritura andam de mão dada com boletins epidemiológicos, não é de estranhar a teoria de que a peste possa ter sido um apelo divino ao arrependimento do povo pecador. Obra da Providência ou não, o que é certo é que o narrador admite que o contágio nada teve de sobrenatural pois, no final de contas, tanto crentes como blasfemos acabaram “todos mortos e todos empilhados na vala comum da humanidade”. É, aliás, estritamente à luz da ciência que o escritor descreve as cadeias de transmissão e alerta para a necessidade de monitorização de contactos em caso de surto, com ou sem aplicação para smartphone.
No plano social, Defoe elogia as virtudes do respeito pelo dever e solidariedade, especialmente entre aqueles que, corajosamente, correm “ao encontro da própria morte” para salvar o próximo. Por outro lado, observa que, no decorrer de uma calamidade pública, o pânico e desespero facilmente contaminam o seio da comunidade, transformando a compaixão em perfídia. Arguto e incisivo, o narrador lamenta os débeis serviços de saúde, critica medidas disparatadas, o oportunismo descarado e condena os comportamentos insensatos do povo. As autoridades de saúde bem tentavam, “mas era como se pregassem no deserto” contra os imprudentes que, muitas vezes sem o saberem, carregavam consigo a peste e transmitiam o mal pelas aldeias, literalmente. Onde é que já ouvimos isto?
Sejamos claros: o presente contexto pandémico não é idêntico ao caos da peste bubónica de séculos passados. Porém, há lições importantes a retirar desta obra, visto que o “Diário do Ano da Peste” foi escrito para exactamente para proveito de uma posteridade em momento de crise sanitária. À falta de uma vacina ou de uma cura para a doença, Daniel Defoe recomenda doses generosas de moderação, cautela e sensatez. Sigamos, portanto, esta terapêutica e o mundo cedo retomará o seu curso habitual.
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