Em “Diário – 1915-1926” (Bertrand Editora, 2018), de Virginia Woolf, estamos perante extractos dos diários da autora, seleccionados pela tradutora Maria José Jorge a partir do texto integral publicado por Anne Olivier Bell.
Adeline Virginia Woolf, nascida Stephen em 1882, foi uma escritora britânica considerada das mais importantes do modernismo. Virginia casou com Leonard Woolf, com quem fundou a editora Hogarth Press. Mulher profundamente feminista, altamente criativa, mas também sofredora de problemas psíquicos que culminaram no seu suicídio, em 1941. Virginia retirou todo o alento para a sua vida das palavras: ler e escrever, todos os dias, todos os anos (segundo a própria: a “expressão traz consolo”). Virginia sofre de “marés espirituais”, com, por vezes, “misturadas felizes no cérebro”, numa dança ventosa por ela assumida: “Por quantas fases se passa entre a sopa e o doce”.
Neste Diário temos descrições de eventos da sua vida pessoal, retratos de encontros sociais, relatórios de afazeres rotineiros, apresentação de acontecimentos históricos e políticos, leves compartilhares de confusões espirituais e, ainda, avaliação e caracterização de pessoas que rodeiam a sua vida. O Diário passa-se no panorama nacional e internacional no auge da Primeira Guerra Mundial e no seio das posteriores mudanças políticas constantes. Acompanhamos cada passo e cada pensamento de Virginia num chocalhar de honestidade emocional, que temos de situar na época em que se encontra. Ao saltitar de mãos dadas com ela no mundo das letras, há um despertar inevitável no leitor de interesse pelos livros que ela está a ler, pelos que está a escrever e pelos autores que nos leva a conhecer.
A diarista escreve como escreve a escritora: com rigorosidade e exigência, fruto de muita observação, num tom profundamente melodioso.
Testemunhamos inúmeras visitas e incursões de pessoas, numa vida repleta de convívios sociais e importância da companhia, amizade e apoio presencial. Virginia está, como refere em Dezembro de 1922, atarefadíssima com Pessoas e livros. Num natural ambiente competitivo próprio de uma elite intelectual, temos Virginia a descrever e avaliar pessoas com algumas contradições porque embalada na sua instabilidade de humor (figuras de indubitável estimular de curiosidade). A figura mais constante no Diário, como é de esperar, é o marido Leonard Woolf. Vamos voando por entre discussões, conversas e costumes de uma relação que, apesar de tudo, é de uma enorme cumplicidade, camaradagem e “Contudo, acho até que nós somos o casal mais feliz de Inglaterra”. No ano de 1925 aparece Vita Sackville-West, com quem Virginia teve uma relação amorosa homossexual, cuja invocação se torna muito regular, porque lhe abriu “tantas fontes de vida”.
Uma das partes mais fascinantes da leitura do Diário é, incontestavelmente, o nosso pré-conhecimento do muito afamado sofrimento psicológico de Virginia. Apesar da melancolia constante, cheiros de gratidão pela felicidade e amor à vida com mudanças por iniciativa da própria (“nunca se deve ficar sentada quando já não nos apetece”) lutam com o nosso receio de cinzento ininterrupto. A mesma tem uma visão muito prática no lidar, por escrito, com a doença, como verificamos em “O Leonard foi até lá no dia seguinte e não me encontrou nem com tendência suicidas nem homicidas” ou “Tenho de apontar à pressa mais sintomas da doença”, colocando a causa da mesma no “estranho e difícil sistema nervoso”. A tristeza é ocasionalmente por ela tanto justificada, como resolvida com “futilidades”, o que se torna estranho para um leitor que invoca problemas da décima terceira dimensão para uma mente como a de Virginia. Encontram-se imensos rasgos de medo do futuro, como em “confesso que não gosto de pensar na senhora de cinquenta anos” e, por entre linhas, muitas vezes pavor de ter perdido festas que acontecem às quais ela não pode atender, o que nos faz reflectir intensamente quando pensamos na parte da “festa da vida” que ela não presenciou.
Diz-se de Virginia ser alguém profundo, mas que não teme o trivial. Poucas são as divagações neste prato de vulgaridade do existir quotidiano. O Diário parece ter fins terapêuticos de organização mundana e não funciona como exploração do misterioso universo mental: o que é pena para quem quer fazer a digestão do lado psicológico com ela e não atender aos problemas banais da existência. Um lado provavelmente menos agradável da leitura do Diário é o ter de lidar com um certo elitismo por parte de Virginia que combina com a descrição dos problemas aparentemente sem qualquer valor para quem quer saber dos espiritualmente elaborados. Virginia dita “mas como eu odeio a mediania”, ou “as classes baixas são mesmo detestáveis”, com o troféu da superioridade premente que, de forma justificada, passa quase por um snobismo intelectual e social (escreve “os valores são os mesmos que os meus, e portanto certos”). Apesar desta faceta mesquinha, temos a correlativa faceta da insegurança e autoconsciência. O momento mais caricato é o por ela descrito em 1926 “como nunca me senti tão humilhada”, quando há uma risada geral numa situação normal entre os amigos mais chegados sobre um devido chapéu de Virginia e “isto não me saiu da cabeça a noite inteira durante o sono”, em sonhos. Quarenta e quatro anos e há uma guerra mundial mental em Virginia por causa de não terem gostado de um chapéu. Desculpamos as bisbilhotices e as idiossincrasias mais desprezíveis, porque a existência é uma mesmice de fragilidade plausível.
Inicialmente a leitura do Diário poderá custar ao leitor que não conhece o ambiente social, histórico e psicológico de Virginia. Todavia, Anne Olivier Bell espalha imensas notas que nos ajudam a compreender o contexto e tentam explicitar factos que, no Diário, nos são dados como se já previamente conhecidos (porque escrito para a “velha Virginia”). Agradecemos as notas, mas o leitor que quer verdadeiramente perceber tudo na totalidade e não se fascina apenas com o que Virginia pensa poderá precisar de ainda mais observações.
A leitura de um diário traz sempre consigo uma familiaridade inesperada e, no final, sentimos o assolar de uma modesta dor no acto de abandonar a possibilidade de acompanhar uma amiga. No entanto, receamos que tal se deva ao aconchego de uma proximidade fatal neste tipo de leituras e não ao facto de ser, como refere Quentin Bell, o retrato fiel de Virgina Woolf. As expectativas de conhecer o mundo interior de Virginia são demasiado notáveis, para no fim não tomarmos a obra como um pouco insípida. Beber um copo interminável que sabemos ser cheio de Virginia não sacia totalmente a sede inicial: há tragos que sabem “a pouca luz”.
Aconselha-se esta leitura a quem não sofre com o medo de a vida ser fútil (caso contrário, irão perceber que até a vida de alguém de complexidade cerebral tremenda é uma mera vida, como todas as outras), a quem não tem expectativas estonteantes quanto à vida pessoal de Virginia, mas também a quem é admirador da mesma (não queremos viver na ilusão de a conhecer).
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