A família é uma célula que gravita de forma intemporal – e, por vezes, também imaterial -, fazendo-se sentir na presença e na memória dos que a compõem. Cada elemento tem a sua identidade e carece de independência para sobreviver, ao mesmo tempo que se alimenta da opacidade dos afectos, qual dimensão espacial repleta de expectativas, alianças e compromissos.
Família talvez seja o que Michael Cunningham retrata em “Dia” (Gradiva, 2024), uma brilhante viagem à individualidade e à complacência dos laços, através dos irmãos Isabel e Robbie; do casal Isabel e Dan, com os filhos Violett e Nothan; com os pais de Odin, Chess e Garth, que procuram a melhor forma de coexistirem na vida do filho. Todos surgem como personagens que materializam ligações e unem atmosferas díspares, num amplo espectro do que é o amor.
Michael Cunningham, autor americano celebrizado com o romance “As Horas”, regressa com um romance que volta a permitir ao leitor sentir-se omnipresente no desenrolar da vida das personagens, de realizar um exercício de empatia com as emoções e as suas escolhas, acompanhando-as em três dias de três anos – 5 de abril de 2019, 2020 e 2021. A base é a vida de uma família nova-iorquina, antes, durante e depois do início da pandemia por Covid-19. Cunningham fá-lo com uma habilidade extraordinária, fazendo coexistir elementos simples do quotidiano com as emoções e as reflexões de cada personagem. Sente-se como mágica esta capacidade do autor manter o foco na forma como cada personagem lida com o que lhes está a acontecer, sem as vitimizar ou sucumbindo a narrativas catastróficas.
Um dia, o mesmo dia em três anos consecutivos, na vida de gente que vê as suas vidas alteradas e procura reagir à adversidade e à evidência de que nada ficou como era. Cunningham mostra como é desafiante manter algum equilíbrio quando a liberdade fica coartada por uma ameaça externa (no caso a pandemia), mas também por compromissos que podem condicionar o espaço e a identidade pessoal.
Encontra-se ainda, neste livro, a extraordinária capacidade do autor de pegar em personagens ligadas pela coexistência espacial: o sapateiro que, às cinco da manhã, abria a sua loja (um Hospital de Sapatos); a rapariga que fazia desporto e se cruza, a correr, com um homem de meia idade que regressava a casa. Cenas observadas por Isabel em mais uma noite de insónia, à janela, observando a vida lá fora, preparando-se para mais uma vez apresentar a mais convincente manifestação de si própria, uma pessoa capaz de fazer tudo o que dela é exigido. O enriquecimento do retrato feito do mundo interior dos irmãos Isabel e Robbie acontece também através de Wolfe, um perfil no Instagram com milhares de seguidores, alimentado pelos dois, como se fosse o irmão mais velho que nunca tiveram.

Pedindo emprestada a expressão, talvez se possa designar a história de Isabel, de Robbie, de Dan e de todos as outras personagens de “Dia” como a beleza das pequenas coisas, do amor entre irmãos, da aceitação de que é possível estar apaixonado por uma pessoa sem que isso signifique posse, de que é possível amar alguém bem-querendo o que a pessoa é na sua essência, na excentricidade e na simplicidade.
“Dia” retrata a capacidade – ou a sua ausência – de fazer um reset à vida, ficando simplesmente a ver o calendário passar. Robbie fá-lo ao finalmente ao abandonar o emprego de professor, reescrevendo os seus últimos 15 anos de vida. Nesse mesmo dia, Isabel continua a observar-se na passividade contemplativa com que gere a sua vida, até também ela perceber que é possível redirecionar a sua trajectória.
A aparente simplicidade da escrita de Cunningham produz um retrato com muitas nuances e camadas, permitindo que reflictamos sobre o amor, para além do sexo e independentemente do género, o luto, a paternidade biológica e a paternidade exercida, bem como o espaço da individualidade dentro da intimidade. Tudo em três momentos e contextos distintos: uma vida desprendida, uma fase de ameaça e, por último, o restauro da confiança e do sentido da existência.
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