Em 2021, à boleia do slogan que levou Salazar ao colo durante décadas, Hugo Gonçalves assinou “Deus Pátria Família” (Companhia das Letras, 2021), um romance com veia policial onde a revisitação histórica caminha ao lado de uma visão distópica de Portugal, onde há tempo para cruzar o Atlântico em direcção aos loucos anos 20 americanos, cozinhar uma trama detectivesca, ensinar várias lições de história e propor um exercício alternativo – uma espécie de “e se?” – à volta de Portugal, onde por algumas vezes ficção e história se diluem.
O livro arranca no momento em que uma mulher é encontrada morta no santuário do Cabo Espichel, envolta num manto branco, com um rosário entre os dedos. Os peregrinos confundem-na com uma aparição de Nossa Senhora, mas os detectives encarregados do caso não vão em delírios, longe de imaginar que aquele será apenas o primeiro de múltiplos homicídios. O caso é entregue a Luís Paixão Leal, ex-pugilista de memória prodigiosa, com um olho de vidro e um passado misterioso em Nova Iorque, um detective empenhado que vê na justiça uma missão de vida.
Até que, numa manhã de domingo, tudo muda: um golpe violento afasta Salazar do poder e sacode o xadrez político do país. Portugal abandona a neutralidade na guerra e alinha-se com as forças do Eixo. Nas ruas da capital, começa o cerco aos refugiados judeus e ecoam as tenebrosas memórias das perseguições da Inquisição. Com a reviravolta política, Paixão Leal vê-se no centro de uma conspiração ao mais alto nível, ele que vive com uma judia alemã e os seus dois filhos.
A certa altura, lemos que “o povo é herdeiro de um temor que nem Aljubarrota nem a Restauração conseguiram sanar, um padecimento de território pequeno e pobre, entalado entre o naufrágio marítimo e um país maior, mais rico, mais sanguinolento”, indo ao encontro da ideia de que ainda padecemos desta ideia de pequenez ou, como Rebeca o coloca, mantendo “os atrasos, os almoços de três horas e quatro garrafas de vinho, o vossa exceência, o nepotismo magnânimo, que não beneficia apenas o filho do arquitecto como ainda arranja um biscate ao sobrinho do caseiro”.
Isaías, o desencantado comandante dedicado a deixar ao mundo o seu testamento, apresenta a visão nazi como sendo pouco original. Após a leitura dos escritos de Samuel Shwarz, um engenheiro de minas polaco, investigador e historiador dos marranos portugueses – judeus convertidos à força -, revisita também ele a história: “Os nazis não tinham inventado nada. Expulsão, confisco de bens e anulação de nacionalidade? Impedimento de ocupar lugares públicos e de casar com cristãos? Tudo isso já acontecera aos judeus nos reinos católicos de Sefarad. O antissemitismo estava costurado nas raízes da cultura europeia, entranhara-se na psique coletiva. Mais do que um preconceito, era uma doença intelectual e conspiratória que, latente durante alguns períodos de paz, ressurgia implacável nas épocas conturbadas da peste bubónica na Península Ibérica ou da crise económica na Alemanha do século XX”. “Deus Pátria Família” parece ser uma homenagem aos judeus e aos muitos pontapés que a História lhes tratou de dar ou, numa leitura mais larga, a todos os refugiados.
O livro está banhado pelo desencanto, seja quando lemos que “a guerra não acabou. Não acabará nunca” ou, um pouco mais à frente, que esta “vive dentro de nós como o fogo nos vulcões ou a raiva nos cães”. Até mesmo os protagonistas policiais, uma dupla constituída por um americano zarolho, ex-pugilista, e um maestro da filarmónica dos homicídios, para quem a viuvez se colou à pele, são personagens desencantadas.
A religião farta-se de apanhar pela tabela da primeira à última página. Quando chegamos aos Três Pastorinhos, estas são as palavras que Lúcia diz ter ouvido: “Aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos enviar”. Antes disso, fala-se da maldição que o Deus da Bíblia legou aos homens: “nasce doente, inacabado pelo pecado original, mas ordeno-te que sejas são e inteiro, sob pena do castigo eterno”. Neste triângulo viciado e bem português que deu título ao livro, vão-se desmontando cada um dos seus vértices: Deus surge como uma ilusão, a Pátria um autêntico pesadelo e só mesmo a família parece sobreviver, ainda que de forma bem diferente, dos cartazes de propaganda difundidos pelo Regime.
Apesar desta revisitação histórica, onde na maior parte do tempo nos passeamos pelos anos 1940, há uma série de temáticas bem actuais estão presentes no romance, desde as fake news ao triunfo das ideologias. “Todos os dias, milhões de pessoas seguem crenças e preceitos que, caso não fossem partilhados em grande número, seriam apenas a demência do maluco da aldeia”, lemos a certa altura, uma frase que encaixa na perfeição neste insano estado de coisas, onde livros são queimados e se tornou impossível dissociar a obra do autor. Tal como o ressuscitar das brigadas da decência, que o livro recupera e que leva a pensar: “A história não se repete, mas rima”.
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