Valter Hugo Mãe confirma, em “Deus na Escuridão“, (Porto Editora, 2024), a habilidade de manter nos seus romances uma forte componente emocional, fazendo-o de forma inovadora, arriscando novos ângulos e novas fórmulas, numa insistência infinita pela descoberta que impele o leitor a permanecer ligado às suas obras. Há, nos seus temas mais usuais, um amor incondicional e transversal, um sentimento de protecção imprescindível tanto entre amantes como entre famílias, revelando a aventura que é desejar-se cuidar de alguém e de querer-se que alguém seja herdeiro de todo um mundo de sonho e de afectos.
Aqui, Valter Hugo Mãe fá-lo viajando até à ilha da Madeira, ao encontro de uma comunidade que sobrevive de forma recôndita, centrada em formas ancestrais de auto-preservação. Seja em termos materiais, nos laços familiares que preserva ou na solidariedade, que faz persistir a ideia de que os maiores desafios são passíveis de superação – isto se for preservada a solidariedade e o amor incondicional.
O relato é o de alguém cuja visão alcança para além dos circuitos mais turísticos da vida na ilha, que se aventura pelos pequenos segredos que só os locais conhecem; de alguém que percebe que, por muitos túneis e acessibilidades que tenham sido construídos, a abertura é lenta e progressiva a aceitação do novo, num registo de continuidade comunitária que se faz notar saber-ser e no saber-fazer quotidiano, nos vocábulos e nas construções frásicas mais particulares.
É o nascimento de Pouquinho que desperta a narrativa: a criança veio ao mundo sem origens – o mesmo é dizer sem genitais -, facto que o faz alvo de desconfiança mas também de bênção e de protecção, acólito de uma existência por todos endeusada. Porque se ama mais quem se vê em perigo, o irmão mais velho de Pouquinho, de seu nome Felicíssimo, amava e cuidava do irmão, acreditando que o seu nascimento naquelas condições era um milagre, um sinal de divindade e que, como todos os deuses, seria sempre frágil e necessitado de protecção e cuidado.
A narrativa é musical, repleta de maneirismos de época, expressões sugestivas de outros tempos e lugares, gentes prenhes de vidas difíceis e, ainda assim, tão vivas. A leitura embala como embaladas estão as personagens centrais, Pouquinho e Felicíssimo, por fazerem parte de um quê de sentido no turbilhão da sua vida difícil, mas vivida com esperança. A narrativa é por isso tão única quanto as personagens, como se as servisse ao invés do que é habitual, quando se criam personagens e histórias para serem contadas ao estilo de alguém. Aqui, sente-se que quem escreve teve a humildade de se dedicar ao que está a relatar, realizando a proeza de nos fazer submergir ou de nos isolar de outros contextos, qual ilhéus volúveis e despidos de entornos.
Através do olhar de uma criança de 10 anos, navega-se entre gentes de uma comunidade repleta de códigos de estar e de ser, que a transformam numa família alargada. Há, neste “Deus na Escuridão”, a família biológica dos Pardieiros, pais de Pouquinho e Felicíssimo, e a comunidade alargada, com os seus laços, crenças e rituais de gente que ancora a existência no determinismo dos deuses e dos homens, ambos capazes de exercerem um poder agigantado de decidir o amanhã de outros.
A narrativa é composta por camadas sobrepostas, de retratos rápidos de gentes e de hábitos daqueles que faziam parte da estratosfera do narrador criança, Felicíssimo, motivo pelo qual persiste um olhar infantil sobre o mundo, despudorado pela inocência. Com um salto temporal de 20 anos, entre 1981 e 2001, a história da família dos Pardieiros retrata a perpetuação das fortes clivagens sociais e do isolamento social, mesmo quando o entorno se alterou, se melhoraram as acessibilidades e os turistas chegaram a rotes.
Às duas partes de uma narrativa escorreita – e até entusiasmante – segue-se um epílogo tão metafórico que abranda o embalo, acordando o leitor de uma história que tinha como segura e relativamente previsível, harmoniosamente retratista de tempos e lugares que se sabem reais e intemporais, ainda que decorridas décadas. Subitamente substituída pela realidade do mundo interior de quem parece expiar culpa, fica a dúvida quanto à fronteira entre o real e o imaginário, entre a censura externa e a autodestruição. A simbiose entre o amor materno, fraterno e divino parece resultar num convite final à contemporização da estranheza.
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